09 fevereiro 2006

Fragmentos do Discurso Amoroso Brega de Reginaldo Rossi


Antônio Nóbrega – certa vez, numa entrevista na TV Cultura de São Paulo – chamou a atenção para o uso da palavra Folclore como definição do conjunto das manifestações culturais autóctones de um lugar. Ele prefere o termo Cultura Popular, para definir as fontes de seu trabalho artístico. Certo que folklore é um anglicismo com um toque do preconceito das primeiras etnografias – mas quando Nóbrega recorta as expressões desta Cultura Popular, geralmente o faz tomando não a popularidade como referente, mas o genuinamente do povo – para validar sua escolha pelo termo. Esta Cultura Popular, o mais das vezes, é “pré-moderna” e rural (ou de periferia, como no caso do Maracatu de Baque Virado). E na ideologia regionalista tradicional (da qual Nóbrega é um releitor), ela, além de ser fundação e reservatório das representações culturais da região – é vista como um todo, Cultura – no singular.

Esta totalização do originalmente local acaba por excluir diversas manifestações culturais contemporâneas do guarda-chuva da Tradição pernambucana. Entretanto, se procurarmos entender por cultura popular o conjunto daquelas expressões que têm mais popularidade em Pernambuco, teremos que nos voltar para manifestações urbanas e “de massa”. Pode-se dizer que o Brega, em suas diversas vertentes, é um dos ritmos mais consumidos no Grande Recife, residência de metade dos sete milhôes de pernambucanos, e em outras capitais do Nordeste. Sendo um exemplar – neste sentido, estatisticamente – popular da cultura.

O termo Brega, como o conhecemos hoje, difundiu-se na década de 80, para designar músicas românticas de gosto “popular” (consumida pelas camadas menos abastadas dos centros urbanos) e sua estética do exagero e do “mau-gosto”. Alguns afirmam que a origem está no nome que se dá aos prostíbulos no interior do Nordeste, sendo música de brega justamente a trilha sonora destas boates. Rede periférica de produção e distribuição, cujos principais centros localizam-se fora do Centro-Sul do Brasil, em Belém, Recife e Fortaleza – o Brega, enquanto ritmo, tem raízes na música romântica popular brasileira do século passado, desde os Seresteiros, passando pelo Samba-Canção, Bolero e Jovem Guarda. Esta última, o movimento que revelou ao Brasil o artista que hoje conhecemos como “O Rei”: Reginaldo Rossi.

Por acreditar que é possível, através da análise do lirismo do Brega, encontrar elementos da visão do Amor (o discurso amoroso) de vasta parcela da população, voltei-me, neste breve texto, à poesia de Reginaldo Rossi – um Clássico (talvez o maior) dentro do cânone do gênero. Como método de estudo, adaptei alguns dos Fragmentos do Discurso Amoroso, presentes no livro homônimo de Roland Barthes, ao universo Brega de Rossi – reescrevendo tópicos da obra, e criando outros que julguei ausentes, a partir de versos de algumas de suas canções.




Fragmentos




“Desde que você partiu”

AUSÊNCIA. Todo episódio de linguagem que põe em cena a ausência do objeto amado – quaisquer que sejam a causa e a duração – e tende a transformar essa ausência em prova de abandono.

1. “Essa história se passou quando deixei meu grande amor naquela estação sorrindo”. O sujeito se vê obrigado a separar-se do objeto amado mas permanece relembrando o último momento junto.

2. “Desde que você partiu que eu perdi a paz, tô desesperado, não aguento mais ficar sem você”. Num momento posterior ao último encontro, vê-se “morrendo de amor”, tomado por uma “vontade louca” de procurar o objeto amado, já se imaginando possivelmente abandonado.






“Vou dizer na tua cara o que penso de ti”

CENA. A figura visa toda “cena” (no sentido doméstico do termo) como troca de contestações recíprocas.

1. Quando dois sujeitos brigam segundo um bate-boca desordenado e tendo em vista obter a “última palavra” (neste caso, a canção), estes dois sujeitos já estão apaixonados: a cena é para eles o exercício de um direito, a prática de uma linguagem a qual eles estão condenados pela paixão. Os parceiros sabem que o confronto ao qual se entregam e que não os separará (mas deixará fissuras suficientes para reaparecer depois) é tão inconseqüente quanto um gozo perverso. “Ah, dessa vez eu vou te esquecer... ...Mas eu volto a te amar”.

2. Ou a cena é só imaginária. O sujeito apaixonado se vinga através do discurso, rejeitando o objeto amoroso: “Eu devia estar doente quando me apaixonei por ti”. E o recusa, insistentemente, “por nada nesse mundo poderás ficar aqui”. Preparando a inevitável cena de quando reencontrar a mulher.

3. A decepção é um abismo: tem tons dramáticos e exagerados: Agride.






“Passou com outro do meu lado e além do mais sorriu pra mim”


CORNO. A figura na qual o sujeito apaixonado descobre que seu objeto amoroso tem outro parceiro.

1. O sujeito vê seu amor passar com outro, e ela sorri pra ele. Crueldade da exposição do gesto íntimo do objeto amoroso para magoar o sujeito apaixonado. A mulher se vinga através da publicidade de sua infidelidade – vista como injusta pelo discurso machista do apaixonado, rejeitado.

2. O sujeito sabe que seu amor está com outro: recebe uma carta dela, dizendo que vai se casar. E lamenta a perda do “grande amor” para outro homem: “Sei, outro alguém te ama, que pensa que você me esqueceu”. Ou ainda: “Eu sei que não sou mais seu grande rei”, eufemismo. Discurso masculino suavizado contra o objeto amado, mea culpa?

3. O sujeito recrimina uma mulher que trai seu namorado. E manifesta sua reprovação à frivolidade com que a “moça linda” se comporta perante o Amor. “Dá vergonha de dizer o que disseram de você”, a reprovação é social. Construindo, dramaticamente, o lugar de exagero desta obsessão: “Vai trair o marido em plena lua de mel”.

4. O Corno é a vítima do amor-paixão romântico, o abandonado, enganado. O Rei da Cornualha (em Tristão e Isolda).






“Tomar a tua mão, pra um canto te levar”


CORPO. Todo pensamento, toda emoção, todo tesão suscitado no sujeito apaixonado pelo corpo amado.

1. “Te dar milhões de beijos pra gente se esquentar”: Desejo de união carnal, interesse sexual no objeto amado: “Eu lhe apertava e olhava seu busto no corpete querendo pular”.

2. “Na tua casa em frente ao portão, um beijo, um abraço, minha mão, tua mão”. O sujeito relembra os padrões de conduta sexual de sua adolescência, a descoberta do Sexo e o controle da Moral da época: “A pílula já existia, mas nem se falava, nos conselhos que tua mãe te dava, tinha um que dizia: ‘Só depois de casar’ ”.







“O teu amor mais uma vez me venceu”


DEPENDÊNCIA. Figura na qual a opinião vê a verdadeira condição do sujeito apaixonado, escravo do objeto amado.

1. O sujeito apaixonado sabe que a situação presente do relacionamento não é boa, sabe que deveria esquecer o objeto amado, mas não se liberta porque está preso a quem ama: “Eu devia ter coragem e dizer, ah, dessa vez vou te esquecer... ...mas eu volto a te amar”.






“Meu grande amor hoje vai se casar”

DOR-DE-COTOVELO. Figura na qual o sujeito apaixonado se entrega à melancolia porque perdeu o objeto de sua paixão.

1. “Garçom, mas eu só quero chorar”: sujeito sabe que é inconveniente mas permanece com sua lamúria, pois “todo bebum fica chato”, mas tem “toda a razão” – os excessos de amor são socialmente perdoáveis.






“Quero tomar todas, vou me embriagar”

EBRIEDADE. O sujeito amoroso vive bêbado, seja para lamentar a perda do objeto amoroso, seja para comemorar sua presença.

1. “Garçom, aqui nesta mesa de bar, você já cansou de escutar centenas de casos de Amor”. Bar, espaço terapêutico onde o sujeito apaixonado afoga as mágoas: nada de ascese, apenas esquecimento, torpor, fuga.

2. “Tudo o que a gente curtia eram três, quatro cubas”. Ebriedade limitada ao álcool, recusa de outras drogas.

3. Festa, evasão. “Tem muita cachaça e muita mulher”, a Recife de Rossi é a própria Pasárgada. Estilo ébrio de ser.








“Mas agora a espera terminou, eu encontrei você cheia de amor”


ENCONTRO. A figura se refere ao tempo feliz que se seguiu imediatamente ao primeiro rapto, antes que nascessem as dificuldades do relacionamento amoroso.

1. “Lembro com muita da saudade daquele bailinho”: a recordação do encontro traz de volta detalhes do contexto onde se deu o encontro.

2. “Você salvou meu coração do mal, da solidão”. Crença no encontro como momento de resgate do sentido da existência: “e nunca mais eu vou ficar sozinho”.






“Quando estou perto de você... ...eu sou até maior que Deus”

OBSCENO. Desacreditada pela opinião moderna, a sentimentalidade do amor deve ser assumida pelo sujeito apaixonado como uma forte transgressão, que o deixa sozinho e exposto, por uma inversão de valores, é pois essa sentimentalidade que faz hoje o obsceno do amor.

1- “Quando estou perto de você não tenho medo de dizer que sou maior que o mar, bem maior que o luar, que eu sou até maior que Deus”: apesar da vigilância da Moral religiosa, o sujeito apaixonado sente-se disposto a transgredi-la por causa de sua devoção ao objeto amado.




Um Discurso Amoroso: o Brega


Lendo Roland Barthes, é possível deduzir que ele considera o discurso amoroso como o lugar da afirmação da individualidade no mundo atual. “Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor”. Reduto último do discurso íntimo, maneira de dar um sentido à própria existência – verdade visível no discurso amoroso do Brega.

Discurso romântico, de origem no Amor Cortês, como pode se deduzir pela descrição dos elementos do romantismo amoroso de Jurandir Freire Costa, em contraposição aos fragmentos acima descritos: “a) aceitação dos excessos e descontroles emocionais dos enamorados; b) exaltação da relação dual; c) humanização do objeto amado; d) indulgência para com os sentimentos ‘vis’ como ciúme, suspeita, ressentimento e, por fim, e) rebaixamento moral do casamento de interesses”. Institucionalização da instabilidade do par amoroso.

Com toda a dramaticidade da paixão, amor de extremos: maravilha e maldição. O sujeito ama e odeia, com alegria (e humor, no caso do Brega) e melancolia. Narcisismo mútuo, onde a idealização do relacionamento amoroso praticamente o impossibilita, como anota Costa, em outra passagem de seu Sem fraude nem favor: “vistas de perto, as exigências da felicidade romântica são tão ou mais despóticas do que a maioria dos ideais de auto-perfeição que o Ocidente inventou”.

Por fim, em Reginaldo, é possível também encontrar uma idealização do amor “sólido” dos anos 60. Uma nostalgia, própria da sua geração, mas também mito bem difundido entre os mais novos. Os Anos Dourados, seguros, românticos. “Lembro com muita saudade daquele bailinho”. Sua poesia chega a ser sofisticada, se comparada com os mais novos sucessos do Brega, de erotismo cada vez mais explícito (mais líquido?). Amor idealizado, onde as pessoas apostam todas as suas fichas, como maneira de evasão de sua realidade, mas também como meio de socialização e lazer. Construção utópica e irônica, em linguagem popular, da paixão.





Bibliografia


BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1998.

COSTA, Jurandir Freire Costa. Sem fraude nem favor.

FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro : Imago, 2002.

ROUGEMONT, Denis de. História do Amor no Ocidente.



(Ensaio escrito no Mestrado em Estudos Literários, para a disciplina Teoria da Ficção, ministrada pelo Prof. Alfredo Cordiviola, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPE, em junho de 2005).

1 Comments:

Blogger Camis said...

Desencanou total de publicar coisas aqui né!
Eita, eita, eita!
beijo

7:40 PM  

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