14 julho 2006

A Palavra de Carlos Pena Filho

Conceito de Poesia através da metalíngüística de um poema seu.


Carlos Pena Filho, um dos expoentes da poesia de língua portuguesa no século XX, teve carreira meteórica e curta como outro conterrâneo seu, Chico Science. E também como a deste último, sua obra arejou a Tradição em que se inseriu, renovando a poesia brasileira, assim como Francisco de Assis França renovou nossa música. Nascido em 1929, no Recife, estreou nas páginas do Diario de Pernambuco em 1950, publicou quatro livros entre 52 e 59, e faleceu em 1960 (também num acidente de carro, também aos 31 anos).

Sobre sua estréia literária, Mauro Mota comenta, no mesmo Diario, na edição de domingo, 11 de março de 1951:

Carlos Pena Filho era inédito até o ano passado, quando publicou os seus primeiros versos neste suplemento. Não parecia coisa de um estreante de vinte anos, os sonetos dele. A força emotiva e a renovação formal levaram logo o Recife literário a acatar com simpatia o nome do jovem poeta. Nos meses que se seguiram, ele não desmentiu as expectativas. Todos os seus poemas – e não foram muitos para serem bons – só fizeram reforçar a linha inicial de preferência temática e do individualismo expressional.

Alcançou em sua curta vida o reconhecimento que muitos escritores levam décadas para conseguir, ou só atingem após a morte. Boêmio, irrequieto, inconformado e solar, criticou assim como reprojetou a literatura e o Recife de seu tempo. Adotando, inclusive, posição polêmica contra a assim chamada “Geração de 45” (que chegou a definir como “existente pelo que negou, e inexistente pelo que poderia mas não ousou afirmar”) – sua poesia ainda hoje é de difícil enquadramento dentro dos rótulos do modernismo nordestino do século passado. Como anota Edilberto Coutinho, em prefácio para uma coletânea póstuma, o autor... :

... inova na temática e, sobretudo, na linguagem, carregada de oralidade, essencialmente musical e de forte apelo pictórico. Visual, plástico, é como se ele realmente pintasse com palavras.

Essa original vidência da arte literária está mais clara em seu poema A palavra (talvez o mais metalíngüístico de todos os que escreveu), transposto a seguir, que abre seu terceiro livro, A vertigem lúcida, de 1958. Neste sentido, acredito sê-lo o mais apropriado para a busca a que se propõe este texto: traçar um conceito de poesia através da obra do autor do Guia Prático da cidade do Recife.


Segundo Coutinho, “viver e escrever são ações indissociadas em Carlos Pena Filho. O poeta investe contra o cotidiano, indaga o seu sentido ‘além das coisas vãs’ e, não raro, se debruça criticamente sobre a própria obra”. A palavra é um desses momentos, na obra do recifense, que tenta criar uma visualização mais geral – um mapa – do ofício de escrever. Sua poesia, tão afeita a tomar a materialidade da vida como ponto de partida, neste poema se volta sobre si mesma – e utiliza imagens do exterior para definir a aventura interior da criação poética.


Curiosamente, como que para demonstrar quão incerta é a jornada do escritor – este “navegador de bruma e incerteza” – o poema não se prende a algum formato clássico, como o soneto – tradição que o poeta dominara e renovara, e através da qual foi mais reconhecido. O decassílabo, entretanto, dá firmeza à construção de versos brancos (metrificados e sem rimas perfeitas, à exceção do desfecho).


Assim, A palavra (referência no título à faculdade de escrever ou ao Verbo) é dividida em quatro estrofes de tamanhos diferentes. A primeira postula a audácia que é escrever, colocando o autor como um navegador de “mares de silêncio”, onde a palavra, precisão e limpidez, residiria. A condição do escritor é instável nessa busca, ele que “frágil” perante a imensidão oceânica das Culturas, e contando apenas com o auxílio precário da técnica – os “vagos instrumentos de procura / que, de longínquos, pouco me auxiliam” – vive sua errância retendo em suas mãos apenas “desconcertados rumos”.


Na segunda estrofe, compreendendo a natureza da expressão como “claridade e superfície” (conteúdo e forma), o poeta, tornado herói no poema, esquece as limitações que o ameaçam – o ouro e a ferrugem de sua humanidade, a perecibilidade da vida – e inicia a aventura de captar a voz que é de todos os homens e que vence o tempo, a Poesia. E dar corpo a este sentimento é também adequá-lo aos “loucos estandartes coloridos por festas e batalhas” – as ideologias, coordenando congraçamentos e guerras, construindo a dança dialética da História.

Ciente do desafio, o autor se prepara e se concentra para o rito da criação, ao mesmo tempo trabalho (“argúcia dos meus dedos”) e olhar (“precisão astuta de meus olhos”) – ambos personalíssimos. E reinventa a vida, fabricando “rosas de alumínio / que por serem metal, negam-se flores / mas por não serem rosas, são mais belas / por conta do artifício que as inventa”. Aqui pode-se perceber uma concepção da poesia como reconstrução ideal da existência, artifício encantado, permanência num mundo que rui um pouco mais instante após instante.


A terceira e maior parte da obra adentra as angústias e revelações do fazer literário. O trabalho mental sobre a matéria vivenciada “às vezes, permanece insolúvel / além da chuva que reveste o tempo / e que alimenta os musgos das paredes, / onde, serena e lúcida, te inscreves”. Aqui, a Poesia inserir-se-ia como musgo nas paredes erguidas pela História, alimentada pelo ritmo eterno do tempo natural, representado pela chuva. No momento de impasse e espera, o poeta afirma ser “inútil procurar-te nesse instante”. Pois a busca por expressão é arredia, e quando o pensamento parece ganhar voz (aparecendo em “cardumes”), as palavras escapam “pelos dedos / deixando apenas a promessa leve / de que a manhã não tarda”. Assim, a posse da poesia é sempre efêmera, como fica claro na sequência do período, já que “na vida / vale mais o sabor da reconquista”.

Neste momento de anartria e indizibilidade, o poeta é capaz de enxergar a condição profunda da “luta com as palavras”, como diria Drummond, “a luta mais vã”. E vê a expressão como “sempre foi”, “além de peixe e saltimbanco, / forma imprecisa que ninguém distingue / mas que a tudo resiste e se apresenta / tanto mais pura quanto mais esquiva”.


Na última estrofe, o autor, “de longe”, observa o “sonho inusitado e dividido em faces” – a subjetividade da poesia, capaz de gerar uma experiência diferente em cada leitor e em cada leitura. E se aproxima do Verbo o mais que pode, a ponto de, se não o dominar, pelo menos o contemplar, sabedor da riqueza que guarda: “mais que astúcia e movimento / aérea estátua de silêncio e bruma” – mais que sons, imagens e idéias, mais que palavras, poesia enquanto estese, composição de sugestões e silêncios.



Bibliografia

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
PENA FILHO, Carlos. Melhores Poemas. Global Editora: São Paulo, 2000.



Poema

A palavra

Navegador de bruma e incerteza,
humilde, me convoco e visto audácia
e te procuro em mares de silêncio
onde, precisa e límpida, resides.
Frágil, sempre me perco, pois retenho
em minhas mãos, desconcertados rumos
e vagos instrumentos de procura
que, de longínquos, pouco me auxiliam.

Por ver que és claridade e superfície,
desprendo-me do ouro do meu sangue
e da ferrugem simples dos meus ossos,
e te aguardo com loucos estandartes
coloridos por festas e batalhas.
Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
e a precisão astuta de meus olhos
e fabrico estas rosas de alumínio
que por serem metal, negam-se flores
mas por não serem rosas, são mais belas
por conta do artifício que as inventa.

Às vezes, permanece insolúvel
além da chuva que reveste o tempo
e que alimenta o musgo das paredes,
onde, serena e lúcida, te inscreves.
Inútil procurar-te nesse instante,
pois muito mais que um peixe és arredia
em cardumes escapas pelos dedos
deixando apenas a promessa leve
de que a manhã não tarda e que na vida
vale mais o sabor de reconquista.
Então te vejo como sempre foste,
além de peixe e mais que saltimbanco,
forma imprecisa que ninguém distingue
mas que a tudo resiste e se apresenta
tanto mais pura quanto mais esquiva.

De longe, olho teu sonho inusitado
e dividido em faces, mais te cerco
e se te não domino então contemplo
teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
e sei que és mais que astúcia e movimento
aérea estátua de silêncio e bruma.


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