31 julho 2006

Tesão 5 x 5 Noticiário


ou O jogo das origens nos poemas de Miró da Muribeca
e de Alberto da Cunha Melo.



“Enfim, trata-se de saber com as estruturas sociais entram na prática significante chamada ‘escrita’ e como é que nela são transformadas”
(Lucila Nogueira).


Recife tem o privilégio de ser berço de grandes poetas ao longo da história do Brasil. Além dos já consagrados nacionalmente – com o modernismo e até a Geração de 45 – como Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, vários outros autores vêm reconstruindo essa Tradição com reconhecida originalidade. Embora muitos leitores, tanto no resto do país quanto aqui em Pernambuco, desconheçam tal posterior evolução – bastante passou desde a consagração de Melo Neto e a morte de Bandeira, nos anos 60.

Para esboçar algumas destas "atualizações" da poesia pernambucana, e como reverência a dois de seus principais poetas vivos; comparamos, neste ensaio, dez poemas (encontrados no final deste artigo) de dois livros: Noticiário (1979), de Alberto da Cunha Melo; e Poemas pra sentir tesão ou não (2002), de Miró da Muribeca. O primeiro, nascido em 1942, integrante da chamada Geração de 65, autor premiado e consagrado – embora esse prestígio não lhe tenha sido suficiente para viver de poesia. O segundo, nascido em 1960, um dos principais expoentes da poesia marginal recifense dos anos 90 até hoje. Performático, viajado, (sobre)vive de suas apresentações e da venda de seus livretos, entre a Muribeca, São Paulo, Fortaleza e onde mais o destino o tem levado.


Metodologia

Todo indivíduo traz na sua fala, inconsciente ou mais conscientemente, signos de pertença a seu lugar e a sua posição dentro da sociedade desse lugar. O poeta, como um tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, dando voz e vida ao alheio dentro de si – mas mesmo o modo com que tece suas bombas de efeito moral revela, além de sua posição dentro da comunidade, também o posicionamento do artista perante o ambiente em que está mergulhado. Lugar de reflexão e questionamento, a poesia – mormente nas duas obras que ora comentamos – é o grito de desacordo (e melodia) dentro da estrutura.

O objetivo deste texto, assim, é trazer à tona as realidades (literárias e mundiais) que deram luz às duas obras – através do uso das linguagens num e noutro escritor. Sendo o poeta a antena da raça, é natural que as obras mencionadas encerrem visões de mundo e de literatura de seus tempos e de nossa nação, refinadas pela experiência individualíssima do estudo e exercício da expressão poética. Através do uso do idioma e das marcas de oralidade poética ou cotidiana, demonstrar como ambos falam de lugares diferentes da mesma cidade – por causa também das origens de cada autor: um, sociólogo; outro, ex-servente. Onde se encontram e se distanciam: diversas coloquialidades e visões do lugar da poesia em Recife, hoje.

Por sugestão de Lucila Nogueira, poetisa e estudiosa da poesia recifense, escolhemos cinco poemas de cada um dos dois livros (importante ressaltar que a idéia desta comparação também foi por ela proposta, como texto de encerramento para sua disciplina Teoria da Poesia, no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE). Devido às características das duas obras, ambas versando sobre um ambiente essencialmente urbano, foi possível encontrar momentos em que os dois poetas tratam de assuntos semelhantes, revelando – sobre um mesmo tema – olhares díspares e/ou próximos entre si.


Autores e obras

Ainda antes de partir para os poemas, e como forma de tornar mais proveitoso o acompanhamento deste ensaio, acredito necessárias algumas palavras sobre Alberto da Cunha Melo e seu Noticiário; e sobre Miró da Muribeca e seu Poemas pra sentir tesão ou não.


Alberto da Cunha Melo nasceu no Jaboatão dos Guararapes, aos 8 de abril de 1942. Filho e neto de escritores, é sociólogo e jornalista, além de poeta. Publicou seu primeiro livro em 1966, Círculo Cósmico – uma separata da revista Estudos Universitários, da UFPE (desde então foram mais de quinze livros publicados). Trabalhou no jornalismo literário pernambucano nas décadas de 70 e 80, bem como em pesquisas sociológicas, pela FUNDAJ (PE) e pelo CEPA (AC). Atualmente mantém a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural – e é funcionário do Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco.

Sua obra surgiu para o público em conjunto com outros escritores da chamada Geração de 65 do modernismo pernambucano. Avessa a concretismo, poesia práxis, poema processo e suas variantes, caracterizava-se, como bem anota Cláudia Cordeiro Reis, pelo “zelo com a palavra e a adoção de variados metros”. As criações deste grupo vieram a público, principalmente, através dos suplementos literários de jornais recifenses, nos primeiros anos da ditadura militar.

Noticiário, de 1979, teve o nome retirado da coluna que Cunha Melo assinou no Jornal do Commercio, no início dos anos 70, onde refletia com notas o movimento literário local. Contando mais de 140 poemas, é um livro especial na sua carreira, “uma tentativa de noticiar o que vejo e sinto a cada dia, a cada noite dentro desta cidade horrenda que se transformou o Recife”, conforme declara o autor. Um libelo contra o regime autoritário, voltado para o significado político da palavra Noticiário, revelando além das notícias comuns suas implicações. Através da cidade o autor procura desvãos e incongruências para expressar sua insatisfação com o momento histórico de sua comunidade, reprimida pelo poder militar.


Miró da Muribeca nasceu em Recife, em 6 de agosto de 1960. Filho de família pobre, não chegou à Universidade. Começou na poesia nos anos 80 (depois de ter trabalhado como servente na extinta Sudene) participando de recitais em Recife. Teve vários poemas publicados em “zines” alternativos na década de 90, como o Caos, editado por Zizo desde 94. Atualmente vive de sua poesia, embora com muitas dificuldades financeiras, através de apresentações e da venda de suas edições. Por causa dela, tem viajado pelo Brasil: já morou em São Paulo, com o dinheiro que ganhou pelos direitos autorais de um poema seu; e em Fortaleza, onde foi criador no concorrido mercado publicitário cearense.

Miró se consolidou com o grupo de poetas que ficou conhecido como o da poesia marginal recifense, principalmente dos anos 90 até hoje, agrupados em torno de recitais e publicações alternativas (de baixo custo de edição – os zines, impressos em papel ofício e xerocados), organizadas por artistas como França, Lara, Malungo e o próprio Miró. Com influência dos Marginais do Sul do país dos anos 70, tem ainda a marca da oralidade – poesia feita para ser (lida e) declamada. Contando, em Recife, com autores principalmente da periferia e de classes desprivilegiadas, carrega forte conotação contracultural, explícita na propositada despreocupação com a métrica e a gramática convencionais, e na leitura cáustica e irônica que faz da sociedade que lhe cerca, entre outras confusões.

Poemas pra sentir tesão ou não, de 2002, editado em Recife, é uma curta coletânea com 17 poemas compostos entre a Muribeca e a Luz. Tem programação visual diferenciada, focada para entreter e fazer refletir, como em suas apresentações. Para Miró vale o mesmo daquela expressão que diz: “Jazz gravado é jazz morto” – quem assiste a suas performances, sabe que o livro não comporta tudo o que as vivíssimas voz e presença do poeta podem revelar.


Cinco a cinco

O método de comparação é uma melhor-de-cinco: tomando semelhantes temas nas duas obras, e cruzando informações tanto no campo paradigmático, quanto no sintagmático – de forma a circunscrever, sem esgotar o assunto, alguns traços da Poética de cada autor. Os dez poemas estão divididos em cinco temas: 1. De ônibus em Recife; 2. Trabalho infantil; 3. Prostituição; 4. Praia; e 5. Consumismo.

De ônibus em Recife

Dois poemas, um de cada autor, nestas obras, fazem referência a uma viagem de ônibus municipal no subúrbio de Recife: De Muribeca ao Centro (p.7), de Miró; e Pelo rádio do ônibus, em Recife (p.33), de Cunha Melo. Ambos estão visceralmente ligados ao momento histórico por que passa sua comunidade, e se complementam se pensarmos no primeiro como a vivência do mecanismo que o segundo desvenda. A crítica ao capitalismo vem dos dois lados, Miró experienciando “o cerco universal” do poderio econômico e a “solidão dos passageiros” que o poema de Melo revela.

É possível perceber na variação da linguagem utilizada os lugares dos dois autores na comunidade. Apesar da obra de Cunha Melo representar um razoável avanço rumo a uma linguagem mais coloquial, sua poeticidade e rigor estético ainda saltam aos olhos, se o compararmos com Miró. “Um pedreiro negro sem camisa e chapéu / Dizendo ao patrão branco / O que tá faltando na construção do mundo” – a ordem direta sujeito-verbo-objeto preservada e a redução do verbo estar à forma usada no cotidiano, são marcas da oralidade comum. Enquanto que em “Estes, em seus acampamentos, / ouvindo já próximo / o ranger de dentes cristãos, / não podiam preocupar-se / com operários e enfermos / dos ônibus que fazem / a linha San-Martin/Recife...” – o aposto virgulado, a escolha dos vocábulos e principalmente a próclise no verbo preocupar são registros de uma oralidade poética tradicional.

Trabalho infantil

Em dois momentos a exploração do trabalho infantil é abordada, em cada livro: em Meninos serpentes ou exportadores de rãs (p.35), de Noticiário; e no poema que começa com o verso Conheci Carla catando lata (p.10), de Poemas... Mais uma vez, irmanados na denúncia e complementares no ponto-de-vista: onde Cunha Melo é geral e globalmente inserido, Miró é específico e local. Os indeterminados meninos serpentes são a vítima última da cadeia predatória internacional – “répteis e órfãos” silenciando pântanos enquanto Deus é louvado por outras crianças. Já Carla é mais uma personagem dos poemas de Miró – fotografados no caos social em que o Brasil está mergulhado. A crítica do Capital em Melo ganha carne e osso – uma criança sem esperança, sem sociologia, sem poesia, catando latas, educada na selvageria insensível das ruas, refletindo no olhar e nos gestos, inconscientemente, os gestos e olhares que lhe oprimem.

A maneira de localizar geograficamente o poema é o principal vestígio do diferente uso do idioma, neste caso. “Os charcos da Zona da Mata / exportam rãs / para o Mercado Comum Europeu” – dificilmente tal frase caberia na voz de um popular. As denominações geográficas são distantes do universo urbano da periferia de Recife. Por outro lado, pela precisão das imagens e pelo seu ritmo, estes versos se aproximam da linguagem poética mais tradicionalmente aceita – descendente legítima do alto modernismo nordestino. Já em Miró, como podemos ver, o uso da língua portuguesa é mais semelhante ao padrão “vulgar”, do que em Cunha Melo, embora a beleza de seus versos também seja cortante: “Conheci Carla catando lata / Seus olhos brilhavam / Como alumínio ao sol / São Paulo ardia / Num calor de quase quarenta graus...”. O que acontece num ermo escondido de Pernambuco e é revelado pelo poeta no Noticiário – já se tornou corriqueiro e generalizado neste poema para não sentir tesão, a ponto de se tornar praticamente invisível. A contração “num”, a referência direta a cidade de São Paulo, sem conceitos regionais como Zona ou Mercado – também reforçam a tese de que a origem da linguagem lapidada na obra de Miró é a fala popular urbana.

Prostituição

Semelhantemente ao que vemos nas duas situações anteriores, entre Perímetro e Periferia (p.71), de Alberto e o poema de Miró que inicia pelo verso Botecos na Luz (p.8) – a dialética de classes e lugares também pode ser percebida quando ambos os autores noticiam a prostituição. “Botecos na Luz: / Putas, / Homens esperando mulheres / para um sexo relâmpago, / espermas por 10 reais, / beijos com gosto de torresmo, / cocaína e Sula Miranda” – o meretrício é no centro de São Paulo, decadente e viciado – criminoso, miserável, próximo da descrição de Plínio Marcos. A cocaína, droga geralmente associada a glamour, é consumida por gente de “subterrânea extração”. A popularização do vício, do sexo – vista de muito próxima, a ponto de ser reveladora, num certo sentido, pela representação e pela realidade inusitada, híbrida.

“Uma terra feita / para mortos e matadores. / O hábitat perfeito / para as soluçantes terezas / que abrem as portas de um mundo em movimento, / e se jogam no seco granito” – a imagem da periferia – onde se encontram os prostíbulos referidos por Cunha Melo – é aterradora: feita para “mortos e matadores”. A dialética de classe salta aos olhos dentro do poema: as putas, pobres “abrem as portas de um mundo em movimento”, ou seja, fazem a ligação entre as classes, na cidade partida. Com muita ironia, o autor descreve as prostitutas como decrépitas, atacando os “bons rapazes da capital” e do capital. E se coloca passivo perante elas, consciente da distância econômica entre seus mundos.

Os sete linosignos de Miró são de velocidade publicitária. Um único verbo, e no gerúndio, uma imagem para cada verso ligeiro – tomando de empréstimo a linguagem das manchetes de jornal sensacionalista (consumida pelo ser humano fotografado no poema). Em Alberto, por outro lado, reforçando o que diz o poema, a linguagem é coloquial de outra maneira. Embora utilize também “palavrões”, a construção das imagens é mais sofisticada e tem outro ritmo, outro fruir: “Altivas putas que empunham / nossos pênis e batem / em nós com nossa própria culpa”.

Praia

Em Recife, como na maioria das cidades do litoral brasileiro, a praia é um dos principais locais de lazer, trabalho e sociabilidade para pessoas de todas as classes e origens. Nesta seleção, em dois momentos faz-se referência à cultura praiana urbana, de maneira igualmente crítica, como alienação improdutiva da realidade opressora (um, o de Miró que começa por Eu pensei fazer um poema bem legal (p.15); o outro, A Jaci Bezerra, num papo antigo (p.85), de Melo). A maneira de reagir perante aqueles que fogem para o ócio sobre a areia, entretanto, é diferente. O tom de desespero em Cunha Melo é lancinante, se retorce na tortura psicológica do medo da polícia política, imprevisível, doentia. E a ignorância e a inércia da maioria da população a respeito desse extremo estado das coisas o revolta, a ponto de tornarem-se alvo de sua raiva e frustração. “O dia está belo”, afinal, e talvez seja um crime recriminar quem procura paliativos em vez de engajar-se na luta contra o regime. Por outro lado, Miró é irônico – e rebate, com o tradicional bom humor nordestino, o crescente arrocho característico da Era FHC. Miró gostaria de dizer maravilhas deste mundo com “mulheres desfilando seus minúsculos biquínis”, mas os vendedores de cachorro quente aparecem na foto – meu deus, meu cachorro: “oh, my dog”! É feriado prolongado apenas para quem tem trabalho. A carestia vinha piorando tanto “no país do presidente sociólogo”, que “Logo-logo, / até seu peido será racionado- / Pobres serão liberados a peidar / só no final de semana / (se não fode a camada de ozônio) / empestando o ar com o cheiro / de ovo e mortadela”.

A escolha dos vocábulos também revela um pouco das origens de cada poética. Desbocado e dessacralizador, Miró utiliza o discurso popular e sua linguagem à-vontade e sem arrodeios. Em Cunha Melo, por sua vez, novamente o uso de próclises e a sofisticada abstração das imagens no primeiro estrofe marcam suas opções estéticas. Neste caso, a utilização de um recurso específico demonstra as diferentes relações dos autores com a Tradição Poética convencional: o uso da interjeição. Em “Ah, talvez seja um crime / tanto desmenti-los / quanto fuzilá-los”, ela tem um diferente uso que em “Oh, my dog” – embora ambas expressem dor, em Miró a ironia é mais explícita que em Alberto, revelando traços de poeticidade pós-modernista, em acordo com as teorias Linda Hutcheon: arte constituída contra as narrativas mestras totalizantes, fragmentária e crítica também da linguagem – principalmente pela paródia que faz de um clichê da literatura, como bem anota a autora: “A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança”.

Consumismo

Para concluir a melhor de cinco, a última partida será entre duas críticas ao consumismo que contamina a vida social e a cidade: Uma sociologia do mercado (p.95), de Alberto Cunha Melo; e o poema que inicia com o verso Quando o mundo acabou (p.18), de Poeta Miró. Neste que é, talvez, o mais coloquial dentre os cinco textos escolhidos de Noticiário, a obra do primeiro mais se aproxima da do segundo – e ambas, do falar cotidiano. E mais uma vez Miró é mais explícito na ironia por trás da apropriação destes objetos de consumo pela sua narrativa poética. Perdido entre marcas, sem saber o que fazer, sem conseguir parar de agir mecanicamente – mesmo perante a maior de todas as mortes: o fim do mundo. Mais uma vez há personagens, o narrador e André, que o acompanha e com quem faz planos de curtir as ofertas do mercado – e o lugar é específico, o Makro. Alberto, por sua vez, é mais sutil e enxuto, em sua crítica bem humorada no início do poema. A inversão de humor se dá na revelação que lhe surge: o espaço público e o espaço privado existem, em nosso momento histórico, não mais para o cidadão politicamente ativo e para o bem-estar da população – mas para o indivíduo consumidor poder consumir mais.

A apropriação da linguagem publicitária pela poesia de Miró é uma forma de desmontar a superficialidade deste discurso, através da ressignificação, parodiando outra vez a narrativa hegemônica do capital. O mundo acabou, sobraram estes produtos e nenhum lugar para realmente viver os sonhos que eles prometem: “se é Bayer, não importa / o mundo acabou”. Há marcas de oralidade cotidiana em diversos momentos, mas nenhum é tão emblemático como nesta seqüência: “(Na volta nós aproveita e compra o CD)”, dita por André, exatamente como costuma falar a maior parte da população pernambucana. O português é o falado, só que escrito. Já em Cunha Melo, por seu turno, o português é o escrito, revisado e corrigido pela gramática normativa, o famoso padrão culto da língua, e a “aérea estátua de silêncio e bruma” lapidada até a exaustão. Seu poema também é conduzido por um rigor formal, apesar do verso branco e livre, e incrustado de aliterações com palavras corriqueiras e imagens simples, como em: “sou, à distância, acionado”, ou “Esquecido dos anúncios, / compro as coisas anunciadas: / a pasta branca do sorriso de Maria, / o detergente detetive / em busca do gérmen misterioso, / a goma de mascar / sucedânea de quem / não podemos triturar, / ou um tipo discreto / e menos bíblico / de ranger os dentes...”.


Conclusão

Embora tenhamos usados algumas metáforas do esporte, não podemos seguir com elas nesta conclusão, pois – como acredito ter ficado provado ao longo deste ensaio – não há perdedores nesta contraposição, nem tampouco suas obras posicionam-se em campos opostos. Ligadas intestinalmente à cultura pernambucana e mundial dos presentes dias, bebem de fontes semelhantes, se contradizem e se complementam, quando comparadas. As diferenças de classes, históricas e estéticas são superadas por afinidades ideológicas e políticas. Além das oralidade, imagética e lógica exuberantes – comuns aos dois autores.

Gerações diferentes: uma surgida nos jornais e dentro das universidades – outra, nas ruas e ao redor dos centros de produção de conhecimento. Uma basicamente composta por escritores anti-aristocráticos de classe média ou alta, outra por artistas mambembes de classe média ou baixa. Uma de brancos e mestiços, outra de brancos e mestiços e negros, principalmente.


Com linguagens, momentos históricos e origens sociais diversos – presentes em seus discursos. Perceptível se compararmos os poemas de introdução e de encerramento das respectivas obras. Miró versifica informalmente a Dedicatória (p.3), agradecendo amigos e colaboradores. Inclusive com “um abraço ao poeta Paulo Lins / pela bela bala de surpresa rara / do seu primeiro romance / Cidade de Deus”, antes do filme ter sido lançado: micropolíticas e a condição humana dos relacionamentos. Em Condições nem tanto objetivas (p.9), texto primeiro de Noticiário, as relações humanas também são centrais: “Tudo isso aconteceu / enquanto o amor, o trabalho / e outras desculpas verdadeiras / se tornavam a ponte / para que isso acontecesse”, mas o autoritarismo corrompia e contaminava todas as existências sob sua égide: “enquanto os mansos / apertavam nas mãos / o cascalho de ferro / para não matar / os que matavam em paz”. A resposta do indivíduo vem eivada de um elogio ao marxismo, sutil como só poderia ser em seu tempo, impregnada subliminarmente ao longo das leituras – e ainda estruturada para repercutir num mundo bipolarizado, onde o poder militar nacional opressor está vinculado ao imperialismo americano, eleito alvo e inimigo, em conjunto com a ditadura: macropolítica e luta de classes nas relações internacionais.

Ambos os autores retornam a imagens da família para fechar suas obras. Cunha Melo focando a intricada contradição de sua psicologia, em Importância da guerra familiar (p.157), presa a redes de afeto e ressentimentos: “Agora, / sem os seres amados, / com seus choros e rixas / de prontidão, / podemos vagar à vontade / e, no entanto, não temos / coragem de vagar: / justamente porque, / sem eles, sabemos / que não há mais ninguém / para nos perdoar”. Miró, pelo contrário, é leve e lembra um episódio feliz da infância: “Outro dia / Num tempo quase distante / Digamos não sei bem quantos anos / Lembro como se fosse ontem / Sapato Conga azul / Os olhos castanhos de Fátima / Fruta-Pão / Roberto Carlos / O primeiro beijo / E minha mãe dizendo: ‘Passa pra dentro João Flávio!’”.


Se, como afirma Eliot, “toda revolução poética está apta a ser uma volta ao falar comum”, podemos perceber dois momentos da execução deste projeto de modernismo literário em Recife, nas últimas quatro décadas. Os dois realizam a travessia, em acordo com sua classe, sua origem e sua época. Vivendo num momento histórico altamente desfavorável (financeiramente) para o exercício da poesia, cada expoente procurou, a sua maneira, injetar ânimo novo na tradição ancestral. Cunha Melo soltou a poesia dos metros tradicionais e inventou o seu. Despiu de excessivos ornamentos sua obra, assimilando bastantes expressões do falar cotidiano, mas ainda dentro de um método e um projeto literário iluminista. Em Miró, suas tentativas soltaram um pouco mais a poesia do suporte livro convencional. Dirigiu sua criação para flertes com o teatro e com as linguagens da publicidade e do sensacionalismo, na busca de novos públicos e maneiras de produzir poesia. Ambas as obras recifensemente universais – e pontuações da absurda condição humana, ainda mais violentamente chocante em uma nação que ergueu os alicerces de suas cidades com trabalho roubado e sangue: Brasil, sociedade sitiada, com diferentes cidadanias para habitantes apenas teoricamente iguais perante a Lei.


Bibliografia

BHABHA, Homi. Apud BEVERLEY, John. Subalternity and Representation. London: Duke University Press, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 1997.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JAUSS, Hans Robert. A história da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
MELO, Alberto Cunha. Noticiário. Recife: Edições Pirata, 1979.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas. Espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002.
MURIBECA, Miró da. Poemas para sentir tesão ou não. Recife: edição do autor, 2002.
NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife: Cia Pacífica, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
REIS, Cláudia Cordeiro. A Obra Poética – Uma Geografia Espacio-Temporal (Fragmento do ensaio Faces da Resistência na Poesia de Alberto da Cunha Melo. Recife: Edições Bagaço, 2003). Plataforma para a poesia. Recife, 2003. Disponível em: <
www.plataforma.paraapoesia.nom.br/trilhasclau.htm > . Acesso em 31 jul. 2005.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração radical? In SIGNORINI, Inês (org). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Poemas:

1.


DE MURIBECA AO CENTRO

O cheira-cola coçando piolhos
De frente ao aeroporto
Fantasias eróticas Domingo e segunda-feira
-21 hs- não percam!!
Um pedreiro negro sem camisa e chapéu
Dizendo ao patrão branco
O que tá faltando na construção do mundo.
Dois caras encostados na estátua
da calçada do Geraldão
Na inércia de uma Terça nublada
O motorista do ônibus dá um banho
num cara de gravata todo arrumado
é melhor evitar a Mascarenhas de Moraes
(disse o cara pelo celular)
uma sirene da polícia bem alto
avisando ao ladrão que está chegando
um ser humano se arrastando
no alumínio do ônibus
descendo com duas moedas de 10 centavos

Miró




PELO RÁDIO DO ÔNIBUS, EM RECIFE

O pesado e pisado
ônibus de San Martin
anunciava pelo rádio
a reunião de cúpula do mundo árabe.
Ninguém, é claro, prestava atenção
no longínquo cerco aos palestinos.
Todos ali, como se diz,
estavam também cercados
(o que aumentava mais ainda
o cerco universal aos palestinos).
Estes, em seus acampamentos,
ouvindo já próximo
o ranger de dentes cristãos,
não podiam preocupar-se
com operários e enfermos
dos ônibus que fazem
a linha San-Martin/Recife
(o que aumentava mais ainda
a solidão dos passageiros).

Alberto da Cunha Melo

2.


MENINOS SERPENTES
OU EXPORTADORES DE RÃS

Os charcos da Zona da Mata
exportam rãs
para o Mercado Comum Europeu.
Dentro da noite pobre,
elas são caçadas pelas crianças
que dormem tarde
e conhecem o canto
das rãs adultas e gordas,
tipo exportação.
À hora em que Deus
é louvado
pelas outras crianças,
esses meninos (répteis e órfãos),
silenciam os pântanos.

Alberto da Cunha Melo




Conheci Carla catando lata
Seus olhos brilhavam
Como alumínio ao sol
São Paulo ardia
Num calor de quase quarenta graus
Pisou na lata
Como pisam os policiais
Nos internos da Febem
Jogou no saco
Com a precisão que os
Internos jogam
Monitores dos telhados
E rápido foi embora,
Tal qual seqüestro relâmpago
Deixando a lembrança
De um tempo que
Não havia seqüestros,
Febem,
Nem tanta polícia,
Muito menos catadores de lata,

Os olhos de Carla
Nem desse poema precisavam.

Miró


3.


Botecos na Luz:
Putas,
Homens esperando mulheres
para um sexo relâmpago,
espermas por 10 reais,
beijos com gosto de torresmo,
cocaína e Sula Miranda.

Miró




PERÍMETRO E PERIFERIA

Uma terra feita
para mortos e matadores,
o habitat perfeito
para as soluçantes terezas
que abrem as portas de um mundo em movimento,
e se jogam no seco granito.

Com o sexo apodrecido
elas às vezes atacam
os bons rapazes da capital,
e dançam com seus longos de mescla
à beira de uma piscina noturna.
Altivas putas que empunham
os nossos pênis e batem
em nós com nossa própria culpa.

Alberto da Cunha Melo




4.


A JACI BEZERRA, NUM PAPO ANTIGO

As caixas de anfetaminas,
as urnas e os mísseis juninos
se misturam nos quartos
das fêmeas enfermas,
nas bolsas dos fetos
fermentados pelo medo.

O dia está belo,
dizem os que vão para a praia.
Ah, talvez seja um crime
tanto desmenti-los
quanto fuzilá-los.

Alberto da Cunha Melo


Eu pensei fazer um poema bem legal
Falar do céu e sol nordestino.
Das mulheres desfilando
seus minúsculos biquínis
Aos olhares de sombrinhas coloridas
E vendedores de cachorro quente.
Oh, my dog,
Feriado prolongado
no país do presidente sociólogo:
Logo-logo,
Até seu peido será racionado-
Pobres serão liberados a peidar
só no final de semana
(se não fode a camada de ozônio)
empestando o ar com o cheiro
de ovo e mortadela.

Miró




5.


UMA SOCIOLOGIA DO MERCADO

Esquecido dos anúncios,
compro as coisas anunciadas:
a pasta branca do sorriso de Maria,
o detergente detetive
em busca do gérmen misterioso,
a goma de mascar
sucedânea de quem
não podemos triturar,
ou um tipo discreto
e menos bíblico
do ranger de dentes.
Esquecido dos painéis
sou, à distância, acionado:
as faixas de pedestre
e os sinais semafóricos
não me defendem propriamente:
eles visam a salvar
a caminho do consumo
o provável consumidor.

Alberto da Cunha Melo




Quando o mundo acabou
eu estava dentro do Makro.
André estava apenas
começando a fazer as compras.
Molho inglês,
Catupiri,
Catchup e mostarda.
Foi na sessão de frios.
Escureceu tudo.
Começou o fim.
Não vai dar tempo nem para
fazer o churrasco,
muito menos ligar para desmarcar.
O celular ficou fora de área
ou temporariamente desligado.
Dentro do Makro? Isso é lugar
pro mundo acabar?
Mudaria alguma coisa se fosse
em Pacoti?
Jeri?
Guaramiranga?

Lá vem André com latas
e mais latas de
manteiga Delicata.
Pra que?
Azeite, alface americano,
pimentão, tomate,
sal grosso e carvão.
(Na volta nós aproveita
e compra o CD)
De quem? Mestre
Ambrósio? Lenine?
Pato Fu?
Sabonete Gessy, ovos,
maionese, jarros, flores
e uma bandeja de carne
de porco.
Por que logo dentro do
Makro?
E o show do Menety Work,
Vitor Ramil e Mundo Livre?
Acabar logo agora mundo?
Feijão, arroz, papel
higiênico e desinfetante.

Quando o mundo acabou
eu estava dentro do Makro,
e André com vários recipientes
de Baygon
E se é Bayer, não importa
o mundo acabou.

Miró



1 Comments:

Blogger Camis said...

pô, muito interessante, mesmo!
bom o artigo!

6:30 PM  

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