20 março 2006

Sociocrítica do Poeta Miró


DE MURIBECA AO CENTRO

O cheira-cola coçando piolhos
De frente ao aeroporto
Fantasias eróticas Domingo e segunda-feira
-21 hs- não percam!!
Um pedreiro negro sem camisa e chapéu
Dizendo ao patrão branco
O que tá faltando na construção do mundo.
Dois caras encostados na estátua
da calçada do Geraldão
Na inércia de uma Terça nublada
O motorista do ônibus dá um banho
num cara de gravata todo arrumado
é melhor evitar a Mascarenhas de Moraes
(disse o cara pelo celular)
uma sirene da polícia bem alto
avisando ao ladrão que está chegando
um ser humano se arrastando
no alumínio do ônibus
descendo com duas moedas de 10 centavos

Poeta Miró
In: Poemas para sentir tesão ou não; Recife, 2001
­­­


A Cidade dentro da poesia de Miró: Leitura sociocrítica do poema “De Muribeca ao Centro”.


“Enfim, trata-se de saber com as estruturas sociais entram na prática significante chamada ‘escrita’ e como é que nela são transformadas”
(Lucila Nogueira).


O poeta e seu leitor são indivíduos materialmente envolvidos com a realidade da cidade que habitam, dentro do conjunto de cidades que pode se considerar o Recife. A se levar em conta a disparidade da estrutura oferecida em vastas regiões da metrópole, pode-se aferir que há também diferentes cidadanias para seus habitantes. Artistas e público vivem essas limites todos os dias, dentro das cidades de sua cidade. Através de suas leituras da urbe, ambos reinventam, simbolicamente, tanto a estrutura social, quanto as representações culturais do lugar. Através destas leituras se misturam novas e velhas conformações, na cartografia de Recife e do Mundo – mapas de uso deste espaço geográfico ligados a classe, etnia, gênero... Achar pontos onde o indivíduo socialmente envolvido (o “anônimo”) encontra voz, remonta discursos e cria imagens da sua cidade (toma para si seu espaço no Mundo, expressa sua posse) – localizar socialmente sua poesia – é o objetivo deste texto.

João Flávio Cordeiro, Poeta Miró, mora na Muribeca, subúrbio da zona sul de Recife. Habitar a periferia de uma grande capital no Brasil, hoje, é viver a experiência da precariedade. Os serviços do Estado e da Iniciativa Privada são ou ausentes ou muito deficientes – falta de saneamento básico, urbanização, policiamento, postos de saúde, hospitais, livrarias, bibliotecas, escolas, cinema – a lista é longa. O lado bom da civilização brasileira, oferecido a toda hora, todos os dias, na televisão aberta e nas portas fechadas dos prédios imponentes, é um mundo de interdições e fronteiras para esmagadora maioria da população pernambucana. Dentro dessa maioria, os cidadãos da Muribeca.

Nossa proposta, neste rápido ensaio, é fazer um apanhado dos personagens sociais presentes no poema De Muribeca ao Centro, de Miró, no livro Poemas para sentir tesão ou não, de 2002. Recortar a sociedade que faz a cidade descrita no poema. E a posição do poeta dentro desta sociedade – impossibilitado de usufruir melhores cidadanias por condição social, mas transgredindo essas fronteiras através da expressão.

O poema traz imagens da cidade a bordo de um ônibus da linha Muribeca-Centro. As contradições da paisagem urbana saltam aos olhos do poeta. Pessoas e lugares deste nada turístico nem histórico Recife se sucedem. Em frente ao moderno aeroporto uma invisível criança de rua se droga, acostuma-se a não desejar voar. Nem deve pisar o ar condicionado do saguão de chão lustrado, um segurança aparece para lembrar que sua cidadania não dá direito a tal usufruto.

Por trás das fantasias eróticas do anúncio, por sua vez, sequer há pessoas. Estas fantasias serão cumpridas por Adalgisas sem rosto, no escuro da boate ao lado do posto de gasolina. Objetos metonimizados na palavra buceta. Opressão dentro da opressão.

Um pedreiro negro, sem camisa e chapéu (capacete?) fazenda a lista de compras para terminar a obra do patrão branco. Vontade (do poeta e do pedreiro) de dizer o que está faltando na sua cidadania. Dialética de classe e de etnia que retrata além do mero fato a estatística: o branco comandando e usufruindo; o negro, construindo, sobrevivendo.

Dois caras (desocupados? desempregados? marginais?) encostados na estátua do Ginásio Geraldo Magalhães (camuflados na imobilidade da pedra?), sem levar a vida mas “na inércia” deste qualquer-dia nublado, sem perspectiva.

O motorista do ônibus – representando os subalternos – se vinga dessa dominação econômica ao “dar um banho num cara de gravata todo arrumado” – representante da elite. Faz isso como pode, rindo, infringindo apenas um transtorno inofensivo. Já o ladrão, não é tão benevolente – apenas a polícia, por preguiça e medo ou falta de preparo e estrutura para trabalhar, dando tempo para o assaltante sumir na multidão.

E por último, o próprio poeta, afirmando a si mesmo que é humano (apesar do tratamento de gado que recebe onde mora ou vai), apesar das fronteiras impostas pelo Capital ao redor de si e do Mundo. Descendo do ônibus de lata como um nada consciente de tudo. No Centro sem mesmo ter o dinheiro para a volta pra casa.

Direções

Sempre a dialética, na representação da realidade. Os contatos são entre personagens de cidades diferentes, na cidade do subúrbio (“é melhor evitar a Mascarenhas de Moraes”). Construção do poeta mas principalmente ponto de vista e linguagem de sua situação social na cidade. Os olhos não procuram muito para encontrar os absurdos, eles estão aí – a contraposição os destaca por contraste, poetiza o óbvio invisível. Se “a ideologia funciona como representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência” (Nogueira), esta leitura de Recife rachada emite uma ideologia comum à maioria excluída das cidadelas da elite pernambuca. E transgride as representações geográficas que a oligarquia impõe como oficiais.

Assim Miró, falando deste lugar fronteiriço, gera identificações não só através desse real próximo revisitado, mas, principalmente, pela linguagem, que é a mesma dos habitantes desse mundo. Ele não apenas vê a realidade e se sente triste ou revoltado. Ele, o poeta, é sujeito às mesmas interdições que seus personagens. Toma as palavras da boca dos excluídos na partilha do 13º maior PIB do planeta. Expressa suas revoltas e alguns de seus anseios. Faz seu leitor um pouco mais consciente da insustentabilidade de qualquer opressão.




Bibliografia

BHABHA, Homi. Apud BEVERLEY, John. Subalternity and Representation. London: Duke University Press, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 1997.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas. Espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002.
NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife: Cia Pacífica, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração radical? In SIGNORINI, Inês (org). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Free Hit Counters
Free Counter