25 janeiro 2007

Paissagens

Poéticas Negras Universais: Jorge Ben e Bob Marley




O estudo da literatura como o conhecemos ultimamente tem estado sujeito a divisões mais políticas que culturais
. Embora se afirme existir certa brasilidade em textos escritos no Brasil, principalmente devido ao isolamento e à unidade proporcionados pela língua (e mantidos a ferro e fogo por um Estado altamente centralizador) – mesmo essas “características” vêm sendo re/desconstruídas através de novas expressividades, geração após geração. Ao observarmos outros países das Américas, entretanto, veremos que sequer essa união entre língua oficial e Estado é capaz de parir literaturas um pouco mais estanques entre si. Será possível dizer com precisão da diferença natural entre a poesia equatoriana e a colombiana? Como bem anota Octavio Paz, embora se queira dar status de doutrina a termos como literatura peruana, ou argentina, ou mexicana – a arte literária não respeita as fronteiras que estudiosos comprometidos com projetos políticos locais insistem em querer ver – ultrapassando limites e gerando relações de influência entre artistas de nações as mais diversas, unidas na distância pela língua comum.

A exacerbação, nos últimos anos, deste apagamento das fronteiras no estudo das literaturas, aparece na leitura de Jean Bessière (2005), que aponta para novas divisas que ultrapassariam mesmo as comunidades lingüísticas –construindo substratos comuns em diálogo transnacional. Seguindo o caminho sugerido pelo citado crítico, em busca de tensões apreensíveis apenas através do olhar comparatista internacional, este artigo cruza idiomas para tentar rascunhar negritudes americanas, imagens da passagem e das paisagens da Diáspora Negra, em letras de dois artistas afrodescendentes americanos: Bob Marley e Jorge Ben Jor.

Para tornar possível uma leitura introdutória a alguns aspectos do tema, o olhar se voltará às letras de dois álbuns bastante próximos historicamente (no sentido cronológico e ideológico do advérbio): África Brasil, de 1976, do brasileiro; e Exodus, de 1977, do jamaicano. O fator relevante na escolha do recorte foi histórica – os anos de 1976 e 77, especificamente (e a década de 70, em geral) representam um momento muito importante para os movimentos negros de todo o Mundo, com a consolidação das independências das colônias africanas, por um lado – e uma estabelecida e crescente afirmação cultural dos povos afrodescendentes nas Américas, pelo outro. Mais um importante aspecto é o mesmo momento de internacionalização da carreira dos dois artistas, cujos álbuns continham repetidos flertes com representações culturais transnacionais daquele momento histórico.

Observando nessa leitura as visões da passagem – a saber, como os dois artistas retratam a Diáspora Negra e a escravidão, relendo a participação de personagens ancestrais, situando o espaço de combate e de convívio com um “outro” dominador, colonizador escravocrata, branco europeu. E também algumas descrições das paisagens – quais as nações, as fronteiras, o espaço comum e o espaço interdito na presente situação dos povos afrodescendentes pelo Mundo e principalmente nas Américas. Como estes artistas se posicionam geograficamente, socialmente, culturalmente – criando lugares de identificação através da poesia e da música. Ultrapassando rótulos de jamaicanidade ou brasilidade, com reinterpretações (propositadamente transnacionais) da violência original e da presente situação dos negros: Paissagens.

Panorama político

A formação e consolidação dos Estados nacionais, desde o século dezoito – na verdade um processo ainda (e sempre) em andamento – vêm “homogeneizando” falares e línguas sobre os territórios que lhe dão corpo, como forma de manter estruturas econômicas e políticas sob um mesmo controle. Natural que esse processo opressivo tenha gerado revoltas, repressões e interdições. Quantas línguas (e literaturas) desapareceram ou quase se extinguiram nos últimos duzentos anos? Os descendentes daqueles grupos originais adaptaram-se a modelos estrangeiros, violência recorrente na história das humanidades – origem, inclusive, da língua em que o presente artigo vai escrito. Por trás deste constante confronto de (falantes de) idiomas, sempre a luta pela centralização do poder político – busca de hegemonia por um determinado grupo de falantes de um dialeto social que, ao estabelecer uma forma de falar transmitida dentro de um grupo étnico como oficial, sugere a intenção de não compartilhar o próprio território com outros grupos étnicos de falantes de uma variação, um dialeto ou mesmo outras línguas. Nas Américas, essa dominação segue características semelhantes em praticamente todos os países – prevalência de grupos eurodescendentes no comando da economia e política do país sobre grupos indígenas ou afrodescendentes.

Dessa divisão territorial entre hegemonias, e como forma de justificar as fronteiras inventadas, certas manifestações culturais passaram a ser consideradas ícones da coletividade mais ampla. Representações da “terra” e dos hábitos de alguns habitantes seus, maneira de unir na adoração dos mesmos ídolos grupos diferentes – forma de tomar posse deste território e instrumento para restringir imaginações destoantes da oficialidade estatal. A literatura teve papel fundamental, como sabemos através de Terry Eagleton, por exemplo, nesse projeto de homogeneização cultural, nos séculos passados. Levado a extremos no século XX, como na Segunda Grande Guerra ou no Estado Novo, tal projeto político agora se afirma com novo paradigma – mundial – além das fronteiras dos Estados nacionais, através das novas formas de imperialismo, como principalmente o estadunidense.

Com o avanço para um padrão global desta homogeneização, como reflexo, as vozes sufocadas durante o processo agora procuram expressão, espaço dentro ou fora da nação, na cultura – lugar que minorias e maiorias despossuídas utilizam como meio de contágio e propagação de contra-ideologias. Nas Américas, apesar de prevalecerem grupos étnicos que comandam, estatisticamente, os Estados, devido a diversas migrações mais ou menos forçadas, outros grupos étnicos vêm construindo suas habitações na representação oficial destas nações. Processo conflituoso e sangrento que agora parece estar ocorrendo – ainda em menor escala do que nas Américas, e de maneira mais lenta – também na Europa, com os muçulmanos na França, por exemplo. E que tende – idealmente, pelo menos – a fazer a hegemonia um pouco menos homogênea em termos de etnia, devido tanto às miscigenações quanto a alguma mobilidade social de etnias dentro do Estado.

Nas Américas, negros e índios foram e continuam sendo excluídos – através de vários mecanismos mais ou menos sutis de espoliação. Um dos instrumentos de dominação, por exemplo, é a adoção de um idioma, uma gramática oficial – e de um conseqüente projeto de estudo literário “legitimamente brasileiro”. A literatura oficial, ligada ao ideal de nacionalismo do século XIX, ainda hoje resiste às representações alternativas híbridas, por estar inercialmente acostumada a homogeneizar a interpretação das culturas com os aristocráticos “cânones” e seus modelos de pertencimento geográfico e social.


Insatisfeitos com sua porção na partilha da economia e da cultura, natural que os movimentos negros buscassem construir identidades próprias, ao longo do século XX, como forma de conquistar espaço entre as estruturas (e principalmente dentro de seus discursos justificantes). Como afirmou Mohamed Ali, em entrevista antes da luta do século, em Kinshasa, contra George Foreman, em 1974, quando afirmou que não se considerava americano, mas negro. Desta forma participando e ajudando a mudar o foco da cultura e da política, adotando um tom mais micro (indivíduos e seu dia-a-dia) que macro (estados nacionais), principalmente na segunda metade do século passado.


Embora algumas obras desta negritude tenham às vezes adotado os mesmos traços autoritários de pureza que contaminaram a constituição das literaturas nacionais, como atesta Zilá Bernd
, num outro momento tomou forma mais híbrida e conseguiu expandir sua ideologia também para além da cor da pele. Como sabemos, o conceito de negritude foi cunhado no século XX, para servir de instrumento no jogo político de interesses glocais. Nesse percurso – e antes dele, através das manifestações ancestrais de resistência afro e indígena – vem sendo construído um vigoroso repertório comum, que fala entre si sobre sua situação. Uma negritude continental que dialoga com a África como um lugar histórico de origem, mas também com a África atual e com outras comunidades negras e mestiças das Américas – onde a opressão é sempre semelhantemente étnica, assassina e desagregadora. Desenhando uma geografia de “nações” negras espalhadas pelos continentes.

Em busca de traçar um pouco desta geografia multifacetada de nações negras atuais, este artigo pretende comparar duas visões desta negritude na música – manifestação onde a cultura negra guarda sua maior influência, sem dúvida, nas civilizações ocidentais – em dois países subdesenvolvidos das Américas. Lendo em comparação a obra de dois grandes compositores, um caribenho e outro sul-americano. Um falante de inglês, outro de português – mas dois artistas para quem a negritude parece central sem ser excludente: Bob Marley e Jorge Ben Jor.

Leituras

O disco Exodus, por muitos considerados a obra-prima de Marley, representou para ele um momento de saída da Jamaica, como sugere o título. Sua gestação começou depois da tentativa de assassinato, em dezembro de 1976, que levou o artista a mudar-se para Inglaterra. Significou talvez o auge da carreira do autor, e o firmou definitivamente para o Mundo.
Já o disco África Brasil é por muitos críticos considerado o último da “melhor fase” do compositor brasileiro. Após os explosivos flertes com a Jovem Guarda e a MPB, e depois de ver sua obra servir de inspiração para a Tropicália, Jorge Ben se concentra na negritude, dialogando com outros movimentos como a Black Rio e Tim Maia, e tocando em bailes. Este é também o primeiro disco em que ele troca o violão pela guitarra elétrica, representando o início de um momento de atualização de sua obra para o mercado internacional, o que ficaria comprovado em um LP seguinte, Tropical. É também o último trabalho em que Jorge Ben faz pesquisa para compor as letras – a partir do próximo disco, as letras já se tornariam bem mais simples.

Lavrando imagens da Passagem e da Paisagem nos dois álbuns, este estudo pretende captar retratos destas geografias reinventadas do Atlântico Negro. Lendo comparadamente a construção da negritude – representações da diáspora, da escravidão e das culturas afro – nas letras de discos marcantes em suas carreiras. Num momento em que, com ambos já artistas maduros, suas ideologias mais se aproximaram.


As imagens da Passagem estão na verdade mescladas com as das Paisagens atuais: afinal são causa e conseqüência – e os artistas não se ocupam diretamente destes temas, mas deixam transparecer suas leituras através de pontuações dentro das letras. Jorge Ben é mais cronista e Bob Marley mais profeta nas suas representações. Os hábitos dos negros, o dia-a-dia e a história estão mais arraigados no brasileiro; enquanto o jamaicano, devido à influência da religião Rastafári, mais do que descrever, se ocupa em construir instrumentos de resistência, mensagens de força e esperança. Vale dizer também que nem todas as canções de cada álbum versam sobre negritude – diretamente, pelo menos (afinal, devido à própria maneira de se expressar, eles a carregam em todas criações).

A África de Jorge Ben, tanto a atual, como nas imagens de “Ponta-de-lança africano (Umbabaraúma)”, quanto a histórica, na música África Brasil, por exemplo, é a subsaariana, negra e pagã. Não por coincidência, no mesmo ano do disco relido neste artigo, Jorge havia gravado um disco com Gilberto Gil, cujo subtítulo era Xangô e Ogum. E o que ele busca com suas releituras é mais fortalecer a autoestima dos negros no Brasil e na África do que levá-los de volta, como prega a religião de Marley.

Por isso mesmo, devido à influência da cultura Rastafári, a África a que Bob faz referência é localizada na Etiópia, a leste do Saara, influenciada pelas religiões nascidas no Oriente Médio, como o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. A própria crença no retorno a Terra Prometida e na vinda do Messias são mitos judaico-cristãos distantes do ecletismo do candomblé e da umbanda. Neste sentido, além de ser muito mais religioso que Ben, Bob Marley é também mais explicitamente político, quando descreve a situação dos negros hoje. Usando imagens bíblicas, muitas vezes, sua poesia é combativa e incisiva. Tanto é verdade que Jorge Ben vivia a ditadura no Brasil, e conseguiu passar quase incólume (não fosse pelo episódio em que País Tropical foi censurada) – enquanto a Jamaica de Bob Marley vivia um governo de esquerda, com o Partido do Povo no poder entre 1972 e 1980, através do presidente Michael Manley, e Marley quase foi assassinado por opositores da direita que acreditavam estar ele a serviço da situação.


As visões da Passagem a que nos referimos são aqui melhor explicitadas como representações do rapto para as Américas e do conseqüente período da escravidão a que diversos povos da África Negra foram submetidos durante mais de três séculos. Neste sentido, as colonizações que deram origem às negritudes dos dois compositores também foram distintas, já que efetuadas por diferentes nações européias e em diferentes territórios americanos. No Brasil foi possível aos negros preservar mais manifestações culturais africanas que nos países onde os ingleses se estabeleceram. Como é sabido, nos Estados Unidos, por exemplo, os negros foram proibidos de tocar tambores – elemento essencial nas culturas africanas. Na Jamaica, depois do domínio espanhol, os anglos se estabeleceram ainda no século XVII (1670), e a escravidão lá foi abolida cinqüenta anos antes daqui (1838).

Desta forma, em Bob Marley essas imagens são naturalmente mais judaico-cristãs, com muitas referências à Bíblia, como em Heathen, nome que se dá aos pagãos, mas também palavra que define o pano com que os escravos se limpavam depois de levarem chicotadas. “Rise up fallen fighters / Rise and take your stance again / ‘Cause he who fight and run away / Live to fight another day / Jah put the Heathen back / There upon the wall...”. Também de fundo místico, outra canção onde tal interpretação é possível é Natural Mystic, que fala da libertação como uma mística natural soprando no ar: “There’s a natural mystic / Blowing through the air / If you listen carefully now you will hear / This could be the final trumpet / Might as well be the last / Many more will have to suffer / Many more will have to die / Don’t ask me why / Things are not the way they used to be / I won’t tell no lie / One and all got to face reality now”. A imagem da Bíblia presente uma vez mais, na trombeta final, e o chamado para ação e resistência, também, para encarar a realidade agora. Entretanto, é preciso ouvir cuidadosamente, prestar atenção na mensagem de Jah (corruptela de Jeovah) para seu povo. Em Exodus, a faixa título, a mais clara visão de como essa passagem foi descrita por Marley, neste álbum, pelo menos. Mais uma vez o povo de Jah em movimento – de volta, nem que seja metafórica, para a África: “Open your eyes and look within / Are you satisfied with the life you’re living? / We know where we’re going; we know where we’re from / We’re leaving Babylon, we’re going to our fatherland / Exodus, movement of Jah people / Send us another Brother Moses gonna cross the Red Sea”. Babilônia, além da referência clara ao episódio da primeira Diáspora judaica, é como os rastafáris referem-se ao mundo do homem branco, descendente de escravocratas. Moisés e o Mar Vermelho, a segunda Diáspora e o chamado para o retorno – o tom é bem próximo do discurso de pastores.

Já em Jorge Ben, sem a preocupação de alijar para a luta, mas de fazer os negros se enxergarem com mais orgulho, as visões da passagem são menos conclamações que atualizações de mitos antigos. Como na música que dá nome ao LP, África Brasil: “Eu quero ver / Quando Zumbi chegar / O que vai acontecer / Zumbi é o senhor das guerras / É o senhor das demandas / Quando Zumbi chega / É Zumbi é quem manda...”. O grande herói dos movimentos negros no Brasil, Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo que existiu neste canto das Américas é esperança de ajuda na luta pela liberdade – aqui mesmo.

Nesse contraponto entre os dois artistas é possível ver uma diferença básica entre Marley e Ben – a questão da nacionalidade. Marley não se refere à história da Jamaica – explicitamente, pelo menos não como Ben, preferindo buscar elementos mais universais – mesmo a palavra Negro aparece bem menos nele, preferida por povo de Jah. Jorge, por sua vez, além de trabalhar alguns mitos universais, como o Taj Mahal, por exemplo, utiliza muito mais a história e geografia do Brasil para compor suas letras. Embora não apareça, além do título, nenhuma outra vez o nome do país, é da releitura destes mitos nacionais, escolhidos a dedo dentre os episódios relativos à escravidão, que Ben reconstrói muito de sua negritude.

Ainda na música-título, uma imagem de nobreza avassalada pelo tráfico de escravos, depois de nomear lugares da África de onde vieram, ele pinta o seguinte quadro: “Aqui onde estão os homens / Há um grande leilão / Dizem que nele há uma princesa à venda / Que veio junto com seus súditos / Acorrentados num carro de boi”. E já na América, como contraponto: “Aqui onde estão os homens / Dum lado cana de açúcar / Do outro lado cafezal / Ao centro senhores sentados / Vendo a colheita do algodão branco / Sendo colhidos por mãos negras”.

Outra canção que retrata a escravidão é Xica da Silva, que conta a história de uma escrava negra que conseguiu se tornar “a imperatriz do Tijuco / A dona de Diamantina”, por se casar com um homem branco rico. A história, já retratada em novelas, demonstra na verdade um dos cruéis mecanismos pelos quais algumas negras conseguiram subverter a ordem opressiva: o sexo – se prostituindo ou conquistando afeição de homens poderosos, para mudar de condição. E tornar-se um exemplo de orgulho negro: “A negra era obrigada a ser recebida / Como uma grande senhora da corte do Rei Luís”.


Quando focamos nossa leitura às visões das Paisagens – a construção do espaço dos negros na geografia do mundo atual, temos, também em Ben, outro fator que tem sido importante para a mudança de condição de negros dentro da sociedade herdada dos colonizadores: o futebol. A primeira composição de África Brasil, Ponta-de-lança africano (Umbabaraúma), fala dessa condição de rei que os grandes jogadores desfrutam em todas as sociedades ocidentais: “Olha que a cidade toda ficou vazia / Nessa tarde de domingo / Só pra te ver jogar”. Neste sentido, a ligação do Brasil com a África e com a própria Jamaica é, em grande parte, devido aos negros que têm escrito a história do esporte no Brasil. Pelé é negro – assim como diversos outros grandes nomes como Leônidas e Garrincha, no passado; e Ronaldinho Gaúcho, no presente.

Em Bob Marley, a visão da paisagem é muito mais política, menos celebrativa, como em Guiltiness, descrevendo o homem branco: “Guiltiness / Pressed on their conscience / And they live their lives / on false pretence every day”. A mensagem, nesta canção também vem em tom meio profético: “Woe to the downpressors / They’ll eat the bread of sorrow / Woe to the downpressors / They’ll eat the bread of sad tomorrow”; e consegue retratar uma estrutura de poder econômico na relação com o escravocrata e seus descendentes, na metáfora: “These are the big fish / who always try to eat down the small fish ... I tell you that: they would do anything / to materialize their every wish”. Marley usa outro panteão de deuses para retratar o povo de Jah, tanto no que tange a religiosidade quanto ao pertencimento geográfico. Seu posicionamento em relação à Babilônia, o mundo do homem branco opressor, é de recusa e combate, buscando independência dentro do sistema. Em Ben, há mais mistura e a estratégia é participar, mas permanecendo íntegro dentro do sistema, construindo seu orgulho com os meios que têm.

Vetores

Há muitos contrastes e sintonias entre as duas obras. São ambas sucesso de público e crítica. Assim como entre os dois artistas, compositores e letristas mestiços afrodescendentes, da periferia do capitalismo mundial. Robert Nesta Marley, filho de mãe negra com pai inglês – e Jorge Duílio Lima Menezes, filho de pai “branco” com mãe etíope, de quem herdou o nome artístico Ben. Mas ambos falam de seus lugares sem excluir, construindo identidades híbridas, negras e americanas – humanas – cada uma a seu modo. Tanto é verdade que as fronteiras entre países não aparecem em suas obras – o “estar no mundo” de ambos é internacionalista e preocupado com agregar mais que com impor limites entre os povos. Tanto o rastafarianismo de Bob, quanto a malandragem de Ben, são lugares para serem habitados, mais do que espaços interditados ao Outro.

Identidades, assim como passaportes, são construídas, nada é natural neste processo. Quando borram as divisas geográficas, geram pertencimento sem gerar exclusão. Tornam-se habitações, explicações da origem: reinvenção de nações africanas híbridas em solo americano. Além das fronteiras nacionais, em busca de construções étnicas interculturais pelo Mundo. Suas obras assim representam parte do caminho até o improvável dia em que as cores não digam mais tanto do maior genocídio da História, e a Passagem finalmente se complete, com a fusão das Paisagens de antes e de depois da Diáspora Negra.






Bibliografia

BERND, Zilá. Literatura e Identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
BESSIÈRE, Jean. “Y-a-t-il des limites de la littérature? Le littérature contemporaine et le dessin paradoxal des frontières”. Le nouveau récit des frontières dans les Amériques. Org. Jean-François Cote e Emmanuelle Tremblay. Québec : Les Presses de l’Université Laval, 2005. 207-22.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.

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