31 julho 2006

Tesão 5 x 5 Noticiário


ou O jogo das origens nos poemas de Miró da Muribeca
e de Alberto da Cunha Melo.



“Enfim, trata-se de saber com as estruturas sociais entram na prática significante chamada ‘escrita’ e como é que nela são transformadas”
(Lucila Nogueira).


Recife tem o privilégio de ser berço de grandes poetas ao longo da história do Brasil. Além dos já consagrados nacionalmente – com o modernismo e até a Geração de 45 – como Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, vários outros autores vêm reconstruindo essa Tradição com reconhecida originalidade. Embora muitos leitores, tanto no resto do país quanto aqui em Pernambuco, desconheçam tal posterior evolução – bastante passou desde a consagração de Melo Neto e a morte de Bandeira, nos anos 60.

Para esboçar algumas destas "atualizações" da poesia pernambucana, e como reverência a dois de seus principais poetas vivos; comparamos, neste ensaio, dez poemas (encontrados no final deste artigo) de dois livros: Noticiário (1979), de Alberto da Cunha Melo; e Poemas pra sentir tesão ou não (2002), de Miró da Muribeca. O primeiro, nascido em 1942, integrante da chamada Geração de 65, autor premiado e consagrado – embora esse prestígio não lhe tenha sido suficiente para viver de poesia. O segundo, nascido em 1960, um dos principais expoentes da poesia marginal recifense dos anos 90 até hoje. Performático, viajado, (sobre)vive de suas apresentações e da venda de seus livretos, entre a Muribeca, São Paulo, Fortaleza e onde mais o destino o tem levado.


Metodologia

Todo indivíduo traz na sua fala, inconsciente ou mais conscientemente, signos de pertença a seu lugar e a sua posição dentro da sociedade desse lugar. O poeta, como um tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, dando voz e vida ao alheio dentro de si – mas mesmo o modo com que tece suas bombas de efeito moral revela, além de sua posição dentro da comunidade, também o posicionamento do artista perante o ambiente em que está mergulhado. Lugar de reflexão e questionamento, a poesia – mormente nas duas obras que ora comentamos – é o grito de desacordo (e melodia) dentro da estrutura.

O objetivo deste texto, assim, é trazer à tona as realidades (literárias e mundiais) que deram luz às duas obras – através do uso das linguagens num e noutro escritor. Sendo o poeta a antena da raça, é natural que as obras mencionadas encerrem visões de mundo e de literatura de seus tempos e de nossa nação, refinadas pela experiência individualíssima do estudo e exercício da expressão poética. Através do uso do idioma e das marcas de oralidade poética ou cotidiana, demonstrar como ambos falam de lugares diferentes da mesma cidade – por causa também das origens de cada autor: um, sociólogo; outro, ex-servente. Onde se encontram e se distanciam: diversas coloquialidades e visões do lugar da poesia em Recife, hoje.

Por sugestão de Lucila Nogueira, poetisa e estudiosa da poesia recifense, escolhemos cinco poemas de cada um dos dois livros (importante ressaltar que a idéia desta comparação também foi por ela proposta, como texto de encerramento para sua disciplina Teoria da Poesia, no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE). Devido às características das duas obras, ambas versando sobre um ambiente essencialmente urbano, foi possível encontrar momentos em que os dois poetas tratam de assuntos semelhantes, revelando – sobre um mesmo tema – olhares díspares e/ou próximos entre si.


Autores e obras

Ainda antes de partir para os poemas, e como forma de tornar mais proveitoso o acompanhamento deste ensaio, acredito necessárias algumas palavras sobre Alberto da Cunha Melo e seu Noticiário; e sobre Miró da Muribeca e seu Poemas pra sentir tesão ou não.


Alberto da Cunha Melo nasceu no Jaboatão dos Guararapes, aos 8 de abril de 1942. Filho e neto de escritores, é sociólogo e jornalista, além de poeta. Publicou seu primeiro livro em 1966, Círculo Cósmico – uma separata da revista Estudos Universitários, da UFPE (desde então foram mais de quinze livros publicados). Trabalhou no jornalismo literário pernambucano nas décadas de 70 e 80, bem como em pesquisas sociológicas, pela FUNDAJ (PE) e pelo CEPA (AC). Atualmente mantém a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural – e é funcionário do Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco.

Sua obra surgiu para o público em conjunto com outros escritores da chamada Geração de 65 do modernismo pernambucano. Avessa a concretismo, poesia práxis, poema processo e suas variantes, caracterizava-se, como bem anota Cláudia Cordeiro Reis, pelo “zelo com a palavra e a adoção de variados metros”. As criações deste grupo vieram a público, principalmente, através dos suplementos literários de jornais recifenses, nos primeiros anos da ditadura militar.

Noticiário, de 1979, teve o nome retirado da coluna que Cunha Melo assinou no Jornal do Commercio, no início dos anos 70, onde refletia com notas o movimento literário local. Contando mais de 140 poemas, é um livro especial na sua carreira, “uma tentativa de noticiar o que vejo e sinto a cada dia, a cada noite dentro desta cidade horrenda que se transformou o Recife”, conforme declara o autor. Um libelo contra o regime autoritário, voltado para o significado político da palavra Noticiário, revelando além das notícias comuns suas implicações. Através da cidade o autor procura desvãos e incongruências para expressar sua insatisfação com o momento histórico de sua comunidade, reprimida pelo poder militar.


Miró da Muribeca nasceu em Recife, em 6 de agosto de 1960. Filho de família pobre, não chegou à Universidade. Começou na poesia nos anos 80 (depois de ter trabalhado como servente na extinta Sudene) participando de recitais em Recife. Teve vários poemas publicados em “zines” alternativos na década de 90, como o Caos, editado por Zizo desde 94. Atualmente vive de sua poesia, embora com muitas dificuldades financeiras, através de apresentações e da venda de suas edições. Por causa dela, tem viajado pelo Brasil: já morou em São Paulo, com o dinheiro que ganhou pelos direitos autorais de um poema seu; e em Fortaleza, onde foi criador no concorrido mercado publicitário cearense.

Miró se consolidou com o grupo de poetas que ficou conhecido como o da poesia marginal recifense, principalmente dos anos 90 até hoje, agrupados em torno de recitais e publicações alternativas (de baixo custo de edição – os zines, impressos em papel ofício e xerocados), organizadas por artistas como França, Lara, Malungo e o próprio Miró. Com influência dos Marginais do Sul do país dos anos 70, tem ainda a marca da oralidade – poesia feita para ser (lida e) declamada. Contando, em Recife, com autores principalmente da periferia e de classes desprivilegiadas, carrega forte conotação contracultural, explícita na propositada despreocupação com a métrica e a gramática convencionais, e na leitura cáustica e irônica que faz da sociedade que lhe cerca, entre outras confusões.

Poemas pra sentir tesão ou não, de 2002, editado em Recife, é uma curta coletânea com 17 poemas compostos entre a Muribeca e a Luz. Tem programação visual diferenciada, focada para entreter e fazer refletir, como em suas apresentações. Para Miró vale o mesmo daquela expressão que diz: “Jazz gravado é jazz morto” – quem assiste a suas performances, sabe que o livro não comporta tudo o que as vivíssimas voz e presença do poeta podem revelar.


Cinco a cinco

O método de comparação é uma melhor-de-cinco: tomando semelhantes temas nas duas obras, e cruzando informações tanto no campo paradigmático, quanto no sintagmático – de forma a circunscrever, sem esgotar o assunto, alguns traços da Poética de cada autor. Os dez poemas estão divididos em cinco temas: 1. De ônibus em Recife; 2. Trabalho infantil; 3. Prostituição; 4. Praia; e 5. Consumismo.

De ônibus em Recife

Dois poemas, um de cada autor, nestas obras, fazem referência a uma viagem de ônibus municipal no subúrbio de Recife: De Muribeca ao Centro (p.7), de Miró; e Pelo rádio do ônibus, em Recife (p.33), de Cunha Melo. Ambos estão visceralmente ligados ao momento histórico por que passa sua comunidade, e se complementam se pensarmos no primeiro como a vivência do mecanismo que o segundo desvenda. A crítica ao capitalismo vem dos dois lados, Miró experienciando “o cerco universal” do poderio econômico e a “solidão dos passageiros” que o poema de Melo revela.

É possível perceber na variação da linguagem utilizada os lugares dos dois autores na comunidade. Apesar da obra de Cunha Melo representar um razoável avanço rumo a uma linguagem mais coloquial, sua poeticidade e rigor estético ainda saltam aos olhos, se o compararmos com Miró. “Um pedreiro negro sem camisa e chapéu / Dizendo ao patrão branco / O que tá faltando na construção do mundo” – a ordem direta sujeito-verbo-objeto preservada e a redução do verbo estar à forma usada no cotidiano, são marcas da oralidade comum. Enquanto que em “Estes, em seus acampamentos, / ouvindo já próximo / o ranger de dentes cristãos, / não podiam preocupar-se / com operários e enfermos / dos ônibus que fazem / a linha San-Martin/Recife...” – o aposto virgulado, a escolha dos vocábulos e principalmente a próclise no verbo preocupar são registros de uma oralidade poética tradicional.

Trabalho infantil

Em dois momentos a exploração do trabalho infantil é abordada, em cada livro: em Meninos serpentes ou exportadores de rãs (p.35), de Noticiário; e no poema que começa com o verso Conheci Carla catando lata (p.10), de Poemas... Mais uma vez, irmanados na denúncia e complementares no ponto-de-vista: onde Cunha Melo é geral e globalmente inserido, Miró é específico e local. Os indeterminados meninos serpentes são a vítima última da cadeia predatória internacional – “répteis e órfãos” silenciando pântanos enquanto Deus é louvado por outras crianças. Já Carla é mais uma personagem dos poemas de Miró – fotografados no caos social em que o Brasil está mergulhado. A crítica do Capital em Melo ganha carne e osso – uma criança sem esperança, sem sociologia, sem poesia, catando latas, educada na selvageria insensível das ruas, refletindo no olhar e nos gestos, inconscientemente, os gestos e olhares que lhe oprimem.

A maneira de localizar geograficamente o poema é o principal vestígio do diferente uso do idioma, neste caso. “Os charcos da Zona da Mata / exportam rãs / para o Mercado Comum Europeu” – dificilmente tal frase caberia na voz de um popular. As denominações geográficas são distantes do universo urbano da periferia de Recife. Por outro lado, pela precisão das imagens e pelo seu ritmo, estes versos se aproximam da linguagem poética mais tradicionalmente aceita – descendente legítima do alto modernismo nordestino. Já em Miró, como podemos ver, o uso da língua portuguesa é mais semelhante ao padrão “vulgar”, do que em Cunha Melo, embora a beleza de seus versos também seja cortante: “Conheci Carla catando lata / Seus olhos brilhavam / Como alumínio ao sol / São Paulo ardia / Num calor de quase quarenta graus...”. O que acontece num ermo escondido de Pernambuco e é revelado pelo poeta no Noticiário – já se tornou corriqueiro e generalizado neste poema para não sentir tesão, a ponto de se tornar praticamente invisível. A contração “num”, a referência direta a cidade de São Paulo, sem conceitos regionais como Zona ou Mercado – também reforçam a tese de que a origem da linguagem lapidada na obra de Miró é a fala popular urbana.

Prostituição

Semelhantemente ao que vemos nas duas situações anteriores, entre Perímetro e Periferia (p.71), de Alberto e o poema de Miró que inicia pelo verso Botecos na Luz (p.8) – a dialética de classes e lugares também pode ser percebida quando ambos os autores noticiam a prostituição. “Botecos na Luz: / Putas, / Homens esperando mulheres / para um sexo relâmpago, / espermas por 10 reais, / beijos com gosto de torresmo, / cocaína e Sula Miranda” – o meretrício é no centro de São Paulo, decadente e viciado – criminoso, miserável, próximo da descrição de Plínio Marcos. A cocaína, droga geralmente associada a glamour, é consumida por gente de “subterrânea extração”. A popularização do vício, do sexo – vista de muito próxima, a ponto de ser reveladora, num certo sentido, pela representação e pela realidade inusitada, híbrida.

“Uma terra feita / para mortos e matadores. / O hábitat perfeito / para as soluçantes terezas / que abrem as portas de um mundo em movimento, / e se jogam no seco granito” – a imagem da periferia – onde se encontram os prostíbulos referidos por Cunha Melo – é aterradora: feita para “mortos e matadores”. A dialética de classe salta aos olhos dentro do poema: as putas, pobres “abrem as portas de um mundo em movimento”, ou seja, fazem a ligação entre as classes, na cidade partida. Com muita ironia, o autor descreve as prostitutas como decrépitas, atacando os “bons rapazes da capital” e do capital. E se coloca passivo perante elas, consciente da distância econômica entre seus mundos.

Os sete linosignos de Miró são de velocidade publicitária. Um único verbo, e no gerúndio, uma imagem para cada verso ligeiro – tomando de empréstimo a linguagem das manchetes de jornal sensacionalista (consumida pelo ser humano fotografado no poema). Em Alberto, por outro lado, reforçando o que diz o poema, a linguagem é coloquial de outra maneira. Embora utilize também “palavrões”, a construção das imagens é mais sofisticada e tem outro ritmo, outro fruir: “Altivas putas que empunham / nossos pênis e batem / em nós com nossa própria culpa”.

Praia

Em Recife, como na maioria das cidades do litoral brasileiro, a praia é um dos principais locais de lazer, trabalho e sociabilidade para pessoas de todas as classes e origens. Nesta seleção, em dois momentos faz-se referência à cultura praiana urbana, de maneira igualmente crítica, como alienação improdutiva da realidade opressora (um, o de Miró que começa por Eu pensei fazer um poema bem legal (p.15); o outro, A Jaci Bezerra, num papo antigo (p.85), de Melo). A maneira de reagir perante aqueles que fogem para o ócio sobre a areia, entretanto, é diferente. O tom de desespero em Cunha Melo é lancinante, se retorce na tortura psicológica do medo da polícia política, imprevisível, doentia. E a ignorância e a inércia da maioria da população a respeito desse extremo estado das coisas o revolta, a ponto de tornarem-se alvo de sua raiva e frustração. “O dia está belo”, afinal, e talvez seja um crime recriminar quem procura paliativos em vez de engajar-se na luta contra o regime. Por outro lado, Miró é irônico – e rebate, com o tradicional bom humor nordestino, o crescente arrocho característico da Era FHC. Miró gostaria de dizer maravilhas deste mundo com “mulheres desfilando seus minúsculos biquínis”, mas os vendedores de cachorro quente aparecem na foto – meu deus, meu cachorro: “oh, my dog”! É feriado prolongado apenas para quem tem trabalho. A carestia vinha piorando tanto “no país do presidente sociólogo”, que “Logo-logo, / até seu peido será racionado- / Pobres serão liberados a peidar / só no final de semana / (se não fode a camada de ozônio) / empestando o ar com o cheiro / de ovo e mortadela”.

A escolha dos vocábulos também revela um pouco das origens de cada poética. Desbocado e dessacralizador, Miró utiliza o discurso popular e sua linguagem à-vontade e sem arrodeios. Em Cunha Melo, por sua vez, novamente o uso de próclises e a sofisticada abstração das imagens no primeiro estrofe marcam suas opções estéticas. Neste caso, a utilização de um recurso específico demonstra as diferentes relações dos autores com a Tradição Poética convencional: o uso da interjeição. Em “Ah, talvez seja um crime / tanto desmenti-los / quanto fuzilá-los”, ela tem um diferente uso que em “Oh, my dog” – embora ambas expressem dor, em Miró a ironia é mais explícita que em Alberto, revelando traços de poeticidade pós-modernista, em acordo com as teorias Linda Hutcheon: arte constituída contra as narrativas mestras totalizantes, fragmentária e crítica também da linguagem – principalmente pela paródia que faz de um clichê da literatura, como bem anota a autora: “A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança”.

Consumismo

Para concluir a melhor de cinco, a última partida será entre duas críticas ao consumismo que contamina a vida social e a cidade: Uma sociologia do mercado (p.95), de Alberto Cunha Melo; e o poema que inicia com o verso Quando o mundo acabou (p.18), de Poeta Miró. Neste que é, talvez, o mais coloquial dentre os cinco textos escolhidos de Noticiário, a obra do primeiro mais se aproxima da do segundo – e ambas, do falar cotidiano. E mais uma vez Miró é mais explícito na ironia por trás da apropriação destes objetos de consumo pela sua narrativa poética. Perdido entre marcas, sem saber o que fazer, sem conseguir parar de agir mecanicamente – mesmo perante a maior de todas as mortes: o fim do mundo. Mais uma vez há personagens, o narrador e André, que o acompanha e com quem faz planos de curtir as ofertas do mercado – e o lugar é específico, o Makro. Alberto, por sua vez, é mais sutil e enxuto, em sua crítica bem humorada no início do poema. A inversão de humor se dá na revelação que lhe surge: o espaço público e o espaço privado existem, em nosso momento histórico, não mais para o cidadão politicamente ativo e para o bem-estar da população – mas para o indivíduo consumidor poder consumir mais.

A apropriação da linguagem publicitária pela poesia de Miró é uma forma de desmontar a superficialidade deste discurso, através da ressignificação, parodiando outra vez a narrativa hegemônica do capital. O mundo acabou, sobraram estes produtos e nenhum lugar para realmente viver os sonhos que eles prometem: “se é Bayer, não importa / o mundo acabou”. Há marcas de oralidade cotidiana em diversos momentos, mas nenhum é tão emblemático como nesta seqüência: “(Na volta nós aproveita e compra o CD)”, dita por André, exatamente como costuma falar a maior parte da população pernambucana. O português é o falado, só que escrito. Já em Cunha Melo, por seu turno, o português é o escrito, revisado e corrigido pela gramática normativa, o famoso padrão culto da língua, e a “aérea estátua de silêncio e bruma” lapidada até a exaustão. Seu poema também é conduzido por um rigor formal, apesar do verso branco e livre, e incrustado de aliterações com palavras corriqueiras e imagens simples, como em: “sou, à distância, acionado”, ou “Esquecido dos anúncios, / compro as coisas anunciadas: / a pasta branca do sorriso de Maria, / o detergente detetive / em busca do gérmen misterioso, / a goma de mascar / sucedânea de quem / não podemos triturar, / ou um tipo discreto / e menos bíblico / de ranger os dentes...”.


Conclusão

Embora tenhamos usados algumas metáforas do esporte, não podemos seguir com elas nesta conclusão, pois – como acredito ter ficado provado ao longo deste ensaio – não há perdedores nesta contraposição, nem tampouco suas obras posicionam-se em campos opostos. Ligadas intestinalmente à cultura pernambucana e mundial dos presentes dias, bebem de fontes semelhantes, se contradizem e se complementam, quando comparadas. As diferenças de classes, históricas e estéticas são superadas por afinidades ideológicas e políticas. Além das oralidade, imagética e lógica exuberantes – comuns aos dois autores.

Gerações diferentes: uma surgida nos jornais e dentro das universidades – outra, nas ruas e ao redor dos centros de produção de conhecimento. Uma basicamente composta por escritores anti-aristocráticos de classe média ou alta, outra por artistas mambembes de classe média ou baixa. Uma de brancos e mestiços, outra de brancos e mestiços e negros, principalmente.


Com linguagens, momentos históricos e origens sociais diversos – presentes em seus discursos. Perceptível se compararmos os poemas de introdução e de encerramento das respectivas obras. Miró versifica informalmente a Dedicatória (p.3), agradecendo amigos e colaboradores. Inclusive com “um abraço ao poeta Paulo Lins / pela bela bala de surpresa rara / do seu primeiro romance / Cidade de Deus”, antes do filme ter sido lançado: micropolíticas e a condição humana dos relacionamentos. Em Condições nem tanto objetivas (p.9), texto primeiro de Noticiário, as relações humanas também são centrais: “Tudo isso aconteceu / enquanto o amor, o trabalho / e outras desculpas verdadeiras / se tornavam a ponte / para que isso acontecesse”, mas o autoritarismo corrompia e contaminava todas as existências sob sua égide: “enquanto os mansos / apertavam nas mãos / o cascalho de ferro / para não matar / os que matavam em paz”. A resposta do indivíduo vem eivada de um elogio ao marxismo, sutil como só poderia ser em seu tempo, impregnada subliminarmente ao longo das leituras – e ainda estruturada para repercutir num mundo bipolarizado, onde o poder militar nacional opressor está vinculado ao imperialismo americano, eleito alvo e inimigo, em conjunto com a ditadura: macropolítica e luta de classes nas relações internacionais.

Ambos os autores retornam a imagens da família para fechar suas obras. Cunha Melo focando a intricada contradição de sua psicologia, em Importância da guerra familiar (p.157), presa a redes de afeto e ressentimentos: “Agora, / sem os seres amados, / com seus choros e rixas / de prontidão, / podemos vagar à vontade / e, no entanto, não temos / coragem de vagar: / justamente porque, / sem eles, sabemos / que não há mais ninguém / para nos perdoar”. Miró, pelo contrário, é leve e lembra um episódio feliz da infância: “Outro dia / Num tempo quase distante / Digamos não sei bem quantos anos / Lembro como se fosse ontem / Sapato Conga azul / Os olhos castanhos de Fátima / Fruta-Pão / Roberto Carlos / O primeiro beijo / E minha mãe dizendo: ‘Passa pra dentro João Flávio!’”.


Se, como afirma Eliot, “toda revolução poética está apta a ser uma volta ao falar comum”, podemos perceber dois momentos da execução deste projeto de modernismo literário em Recife, nas últimas quatro décadas. Os dois realizam a travessia, em acordo com sua classe, sua origem e sua época. Vivendo num momento histórico altamente desfavorável (financeiramente) para o exercício da poesia, cada expoente procurou, a sua maneira, injetar ânimo novo na tradição ancestral. Cunha Melo soltou a poesia dos metros tradicionais e inventou o seu. Despiu de excessivos ornamentos sua obra, assimilando bastantes expressões do falar cotidiano, mas ainda dentro de um método e um projeto literário iluminista. Em Miró, suas tentativas soltaram um pouco mais a poesia do suporte livro convencional. Dirigiu sua criação para flertes com o teatro e com as linguagens da publicidade e do sensacionalismo, na busca de novos públicos e maneiras de produzir poesia. Ambas as obras recifensemente universais – e pontuações da absurda condição humana, ainda mais violentamente chocante em uma nação que ergueu os alicerces de suas cidades com trabalho roubado e sangue: Brasil, sociedade sitiada, com diferentes cidadanias para habitantes apenas teoricamente iguais perante a Lei.


Bibliografia

BHABHA, Homi. Apud BEVERLEY, John. Subalternity and Representation. London: Duke University Press, 1999.
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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JAUSS, Hans Robert. A história da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
MELO, Alberto Cunha. Noticiário. Recife: Edições Pirata, 1979.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas. Espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002.
MURIBECA, Miró da. Poemas para sentir tesão ou não. Recife: edição do autor, 2002.
NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife: Cia Pacífica, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
REIS, Cláudia Cordeiro. A Obra Poética – Uma Geografia Espacio-Temporal (Fragmento do ensaio Faces da Resistência na Poesia de Alberto da Cunha Melo. Recife: Edições Bagaço, 2003). Plataforma para a poesia. Recife, 2003. Disponível em: <
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RAJAGOPALAN, Kanavillil. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração radical? In SIGNORINI, Inês (org). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Poemas:

1.


DE MURIBECA AO CENTRO

O cheira-cola coçando piolhos
De frente ao aeroporto
Fantasias eróticas Domingo e segunda-feira
-21 hs- não percam!!
Um pedreiro negro sem camisa e chapéu
Dizendo ao patrão branco
O que tá faltando na construção do mundo.
Dois caras encostados na estátua
da calçada do Geraldão
Na inércia de uma Terça nublada
O motorista do ônibus dá um banho
num cara de gravata todo arrumado
é melhor evitar a Mascarenhas de Moraes
(disse o cara pelo celular)
uma sirene da polícia bem alto
avisando ao ladrão que está chegando
um ser humano se arrastando
no alumínio do ônibus
descendo com duas moedas de 10 centavos

Miró




PELO RÁDIO DO ÔNIBUS, EM RECIFE

O pesado e pisado
ônibus de San Martin
anunciava pelo rádio
a reunião de cúpula do mundo árabe.
Ninguém, é claro, prestava atenção
no longínquo cerco aos palestinos.
Todos ali, como se diz,
estavam também cercados
(o que aumentava mais ainda
o cerco universal aos palestinos).
Estes, em seus acampamentos,
ouvindo já próximo
o ranger de dentes cristãos,
não podiam preocupar-se
com operários e enfermos
dos ônibus que fazem
a linha San-Martin/Recife
(o que aumentava mais ainda
a solidão dos passageiros).

Alberto da Cunha Melo

2.


MENINOS SERPENTES
OU EXPORTADORES DE RÃS

Os charcos da Zona da Mata
exportam rãs
para o Mercado Comum Europeu.
Dentro da noite pobre,
elas são caçadas pelas crianças
que dormem tarde
e conhecem o canto
das rãs adultas e gordas,
tipo exportação.
À hora em que Deus
é louvado
pelas outras crianças,
esses meninos (répteis e órfãos),
silenciam os pântanos.

Alberto da Cunha Melo




Conheci Carla catando lata
Seus olhos brilhavam
Como alumínio ao sol
São Paulo ardia
Num calor de quase quarenta graus
Pisou na lata
Como pisam os policiais
Nos internos da Febem
Jogou no saco
Com a precisão que os
Internos jogam
Monitores dos telhados
E rápido foi embora,
Tal qual seqüestro relâmpago
Deixando a lembrança
De um tempo que
Não havia seqüestros,
Febem,
Nem tanta polícia,
Muito menos catadores de lata,

Os olhos de Carla
Nem desse poema precisavam.

Miró


3.


Botecos na Luz:
Putas,
Homens esperando mulheres
para um sexo relâmpago,
espermas por 10 reais,
beijos com gosto de torresmo,
cocaína e Sula Miranda.

Miró




PERÍMETRO E PERIFERIA

Uma terra feita
para mortos e matadores,
o habitat perfeito
para as soluçantes terezas
que abrem as portas de um mundo em movimento,
e se jogam no seco granito.

Com o sexo apodrecido
elas às vezes atacam
os bons rapazes da capital,
e dançam com seus longos de mescla
à beira de uma piscina noturna.
Altivas putas que empunham
os nossos pênis e batem
em nós com nossa própria culpa.

Alberto da Cunha Melo




4.


A JACI BEZERRA, NUM PAPO ANTIGO

As caixas de anfetaminas,
as urnas e os mísseis juninos
se misturam nos quartos
das fêmeas enfermas,
nas bolsas dos fetos
fermentados pelo medo.

O dia está belo,
dizem os que vão para a praia.
Ah, talvez seja um crime
tanto desmenti-los
quanto fuzilá-los.

Alberto da Cunha Melo


Eu pensei fazer um poema bem legal
Falar do céu e sol nordestino.
Das mulheres desfilando
seus minúsculos biquínis
Aos olhares de sombrinhas coloridas
E vendedores de cachorro quente.
Oh, my dog,
Feriado prolongado
no país do presidente sociólogo:
Logo-logo,
Até seu peido será racionado-
Pobres serão liberados a peidar
só no final de semana
(se não fode a camada de ozônio)
empestando o ar com o cheiro
de ovo e mortadela.

Miró




5.


UMA SOCIOLOGIA DO MERCADO

Esquecido dos anúncios,
compro as coisas anunciadas:
a pasta branca do sorriso de Maria,
o detergente detetive
em busca do gérmen misterioso,
a goma de mascar
sucedânea de quem
não podemos triturar,
ou um tipo discreto
e menos bíblico
do ranger de dentes.
Esquecido dos painéis
sou, à distância, acionado:
as faixas de pedestre
e os sinais semafóricos
não me defendem propriamente:
eles visam a salvar
a caminho do consumo
o provável consumidor.

Alberto da Cunha Melo




Quando o mundo acabou
eu estava dentro do Makro.
André estava apenas
começando a fazer as compras.
Molho inglês,
Catupiri,
Catchup e mostarda.
Foi na sessão de frios.
Escureceu tudo.
Começou o fim.
Não vai dar tempo nem para
fazer o churrasco,
muito menos ligar para desmarcar.
O celular ficou fora de área
ou temporariamente desligado.
Dentro do Makro? Isso é lugar
pro mundo acabar?
Mudaria alguma coisa se fosse
em Pacoti?
Jeri?
Guaramiranga?

Lá vem André com latas
e mais latas de
manteiga Delicata.
Pra que?
Azeite, alface americano,
pimentão, tomate,
sal grosso e carvão.
(Na volta nós aproveita
e compra o CD)
De quem? Mestre
Ambrósio? Lenine?
Pato Fu?
Sabonete Gessy, ovos,
maionese, jarros, flores
e uma bandeja de carne
de porco.
Por que logo dentro do
Makro?
E o show do Menety Work,
Vitor Ramil e Mundo Livre?
Acabar logo agora mundo?
Feijão, arroz, papel
higiênico e desinfetante.

Quando o mundo acabou
eu estava dentro do Makro,
e André com vários recipientes
de Baygon
E se é Bayer, não importa
o mundo acabou.

Miró



14 julho 2006

A Palavra de Carlos Pena Filho

Conceito de Poesia através da metalíngüística de um poema seu.


Carlos Pena Filho, um dos expoentes da poesia de língua portuguesa no século XX, teve carreira meteórica e curta como outro conterrâneo seu, Chico Science. E também como a deste último, sua obra arejou a Tradição em que se inseriu, renovando a poesia brasileira, assim como Francisco de Assis França renovou nossa música. Nascido em 1929, no Recife, estreou nas páginas do Diario de Pernambuco em 1950, publicou quatro livros entre 52 e 59, e faleceu em 1960 (também num acidente de carro, também aos 31 anos).

Sobre sua estréia literária, Mauro Mota comenta, no mesmo Diario, na edição de domingo, 11 de março de 1951:

Carlos Pena Filho era inédito até o ano passado, quando publicou os seus primeiros versos neste suplemento. Não parecia coisa de um estreante de vinte anos, os sonetos dele. A força emotiva e a renovação formal levaram logo o Recife literário a acatar com simpatia o nome do jovem poeta. Nos meses que se seguiram, ele não desmentiu as expectativas. Todos os seus poemas – e não foram muitos para serem bons – só fizeram reforçar a linha inicial de preferência temática e do individualismo expressional.

Alcançou em sua curta vida o reconhecimento que muitos escritores levam décadas para conseguir, ou só atingem após a morte. Boêmio, irrequieto, inconformado e solar, criticou assim como reprojetou a literatura e o Recife de seu tempo. Adotando, inclusive, posição polêmica contra a assim chamada “Geração de 45” (que chegou a definir como “existente pelo que negou, e inexistente pelo que poderia mas não ousou afirmar”) – sua poesia ainda hoje é de difícil enquadramento dentro dos rótulos do modernismo nordestino do século passado. Como anota Edilberto Coutinho, em prefácio para uma coletânea póstuma, o autor... :

... inova na temática e, sobretudo, na linguagem, carregada de oralidade, essencialmente musical e de forte apelo pictórico. Visual, plástico, é como se ele realmente pintasse com palavras.

Essa original vidência da arte literária está mais clara em seu poema A palavra (talvez o mais metalíngüístico de todos os que escreveu), transposto a seguir, que abre seu terceiro livro, A vertigem lúcida, de 1958. Neste sentido, acredito sê-lo o mais apropriado para a busca a que se propõe este texto: traçar um conceito de poesia através da obra do autor do Guia Prático da cidade do Recife.


Segundo Coutinho, “viver e escrever são ações indissociadas em Carlos Pena Filho. O poeta investe contra o cotidiano, indaga o seu sentido ‘além das coisas vãs’ e, não raro, se debruça criticamente sobre a própria obra”. A palavra é um desses momentos, na obra do recifense, que tenta criar uma visualização mais geral – um mapa – do ofício de escrever. Sua poesia, tão afeita a tomar a materialidade da vida como ponto de partida, neste poema se volta sobre si mesma – e utiliza imagens do exterior para definir a aventura interior da criação poética.


Curiosamente, como que para demonstrar quão incerta é a jornada do escritor – este “navegador de bruma e incerteza” – o poema não se prende a algum formato clássico, como o soneto – tradição que o poeta dominara e renovara, e através da qual foi mais reconhecido. O decassílabo, entretanto, dá firmeza à construção de versos brancos (metrificados e sem rimas perfeitas, à exceção do desfecho).


Assim, A palavra (referência no título à faculdade de escrever ou ao Verbo) é dividida em quatro estrofes de tamanhos diferentes. A primeira postula a audácia que é escrever, colocando o autor como um navegador de “mares de silêncio”, onde a palavra, precisão e limpidez, residiria. A condição do escritor é instável nessa busca, ele que “frágil” perante a imensidão oceânica das Culturas, e contando apenas com o auxílio precário da técnica – os “vagos instrumentos de procura / que, de longínquos, pouco me auxiliam” – vive sua errância retendo em suas mãos apenas “desconcertados rumos”.


Na segunda estrofe, compreendendo a natureza da expressão como “claridade e superfície” (conteúdo e forma), o poeta, tornado herói no poema, esquece as limitações que o ameaçam – o ouro e a ferrugem de sua humanidade, a perecibilidade da vida – e inicia a aventura de captar a voz que é de todos os homens e que vence o tempo, a Poesia. E dar corpo a este sentimento é também adequá-lo aos “loucos estandartes coloridos por festas e batalhas” – as ideologias, coordenando congraçamentos e guerras, construindo a dança dialética da História.

Ciente do desafio, o autor se prepara e se concentra para o rito da criação, ao mesmo tempo trabalho (“argúcia dos meus dedos”) e olhar (“precisão astuta de meus olhos”) – ambos personalíssimos. E reinventa a vida, fabricando “rosas de alumínio / que por serem metal, negam-se flores / mas por não serem rosas, são mais belas / por conta do artifício que as inventa”. Aqui pode-se perceber uma concepção da poesia como reconstrução ideal da existência, artifício encantado, permanência num mundo que rui um pouco mais instante após instante.


A terceira e maior parte da obra adentra as angústias e revelações do fazer literário. O trabalho mental sobre a matéria vivenciada “às vezes, permanece insolúvel / além da chuva que reveste o tempo / e que alimenta os musgos das paredes, / onde, serena e lúcida, te inscreves”. Aqui, a Poesia inserir-se-ia como musgo nas paredes erguidas pela História, alimentada pelo ritmo eterno do tempo natural, representado pela chuva. No momento de impasse e espera, o poeta afirma ser “inútil procurar-te nesse instante”. Pois a busca por expressão é arredia, e quando o pensamento parece ganhar voz (aparecendo em “cardumes”), as palavras escapam “pelos dedos / deixando apenas a promessa leve / de que a manhã não tarda”. Assim, a posse da poesia é sempre efêmera, como fica claro na sequência do período, já que “na vida / vale mais o sabor da reconquista”.

Neste momento de anartria e indizibilidade, o poeta é capaz de enxergar a condição profunda da “luta com as palavras”, como diria Drummond, “a luta mais vã”. E vê a expressão como “sempre foi”, “além de peixe e saltimbanco, / forma imprecisa que ninguém distingue / mas que a tudo resiste e se apresenta / tanto mais pura quanto mais esquiva”.


Na última estrofe, o autor, “de longe”, observa o “sonho inusitado e dividido em faces” – a subjetividade da poesia, capaz de gerar uma experiência diferente em cada leitor e em cada leitura. E se aproxima do Verbo o mais que pode, a ponto de, se não o dominar, pelo menos o contemplar, sabedor da riqueza que guarda: “mais que astúcia e movimento / aérea estátua de silêncio e bruma” – mais que sons, imagens e idéias, mais que palavras, poesia enquanto estese, composição de sugestões e silêncios.



Bibliografia

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
PENA FILHO, Carlos. Melhores Poemas. Global Editora: São Paulo, 2000.



Poema

A palavra

Navegador de bruma e incerteza,
humilde, me convoco e visto audácia
e te procuro em mares de silêncio
onde, precisa e límpida, resides.
Frágil, sempre me perco, pois retenho
em minhas mãos, desconcertados rumos
e vagos instrumentos de procura
que, de longínquos, pouco me auxiliam.

Por ver que és claridade e superfície,
desprendo-me do ouro do meu sangue
e da ferrugem simples dos meus ossos,
e te aguardo com loucos estandartes
coloridos por festas e batalhas.
Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
e a precisão astuta de meus olhos
e fabrico estas rosas de alumínio
que por serem metal, negam-se flores
mas por não serem rosas, são mais belas
por conta do artifício que as inventa.

Às vezes, permanece insolúvel
além da chuva que reveste o tempo
e que alimenta o musgo das paredes,
onde, serena e lúcida, te inscreves.
Inútil procurar-te nesse instante,
pois muito mais que um peixe és arredia
em cardumes escapas pelos dedos
deixando apenas a promessa leve
de que a manhã não tarda e que na vida
vale mais o sabor de reconquista.
Então te vejo como sempre foste,
além de peixe e mais que saltimbanco,
forma imprecisa que ninguém distingue
mas que a tudo resiste e se apresenta
tanto mais pura quanto mais esquiva.

De longe, olho teu sonho inusitado
e dividido em faces, mais te cerco
e se te não domino então contemplo
teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
e sei que és mais que astúcia e movimento
aérea estátua de silêncio e bruma.


04 julho 2006

Oximórica existência de Álvaro de Campos


Dialética entre o mundo do poeta e o mundo a seu redor na Lisboa revisitada de Pessoa.


“O deserto urbano cobre-se de signos: as pedras dizem algo, o vento diz, a janela iluminada e a árvore solitária na esquina dizem, tudo está dizendo algo, não é isto que digo e sim outra coisa, sempre outra coisa, a mesma coisa que nunca se diz.”
Octavio Paz



Nas sociedades ocidentais contemporâneas, o poeta é cada vez mais um desterrado em seu próprio lugar. Além de nunca ganhar dinheiro suficiente com seu ofício, tendo de exercer outras profissões para sustentar-se; sua obra e sua vida geralmente não são assimiladas (e consumidas e/ou aceitas) pelos seus contemporâneos, que a desconhecem e/ou a recusam por sua alegada inutilidade. Não há ‘nichos de mercado’ para a poesia de poetas vivos, especialmente os mais ‘jovens’ (até 40 anos) – e talvez seja até mais fácil falar em ‘guetos’. O exercício da poesia, em autores de todas as classes, é sempre uma resistência ao que sua comunidade quer lhes impor como padrão de trabalho e de comportamento, enquanto cidadãos comuns e enquanto artistas.


Se tomarmos esta questão em sua materialidade histórica, localizando-a no tempo e no espaço, veremos que o lugar onde essa dialética acontece é a Cidade que habita e é habitada pelo poeta. É através da Cidade que o autor se insere em suas comunidades – universitária, nacional, estadual, regional, artística... – e publica sua obra. E sofre seus ataques, angaria suas simpatias iniciais, pratica sua ideologia artística na política local, engaja-se em correntes de pensamentos e encontros, afasta-se do passado para dentro dele – e recria (no pragmático cotidiano de sonhos à prova de sonhos) sua Cidade, a sociedade a que pertence.

Quando lemos desta forma a condição do poeta na contemporaneidade, estamos tratando de modelos gerais, mitos e estatísticas. Para tornar mais concreta a estrutura expressa acima, retirada do ensaio O Verbo Desencarnado, de Octavio Paz (p. 76), este artigo pretende reler dois poemas de Álvaro de Campos, os Lisbon Revisited de 1923 e de 1926 – para encontrar tal dicotomia poeta/cidade através dessas poesias. Nelas, a dialética entre a imaginação do poeta e a realidade material que o circunda ganha expressão emblemática, tamanho o paradoxo do verbo insurreto de Campos na boca submetida do cidadão Pessoa: oximórica tensão entre poética e política.

Muitos poetas não revelam essa dessintonia em diversas de suas obras: a cidade e a sociedade nem sempre aparecem explicitamente. Em Pessoa, este múltiplo, tal dialética é bem menos perceptível em alguns de seus heterônimos. Em Alberto Caeiro, Ricardo Reis, no próprio Pessoa, e até em grande parte dos poemas de Álvaro de Campos, essa relação com a Lisboa de seu tempo não é tão clara. Fernando Pessoa, cidadão e poeta, como na generalização que abre este texto, foi também atacado quando vivo, visto como estranho, ignorado – e sobreviveu de empregos não relacionados à sua literatura. Em Álvaro de Campos, ele parece responder – dentro da poesia, de maneira muito sutil, cosmopolita e universal – à repulsa a ele dirigida pela provinciana sociedade lisboeta de seu tempo.

Para refletir melhor sobre o assunto, escolhemos dois poemas seus com o mesmo nome: Lisbon Revisited. A escolha se deu por diversos fatores, dentre os principais: pela referência à Lisboa, e a consequentre projeção sentimental do poeta sobre sua comunidade; por se dar em dois momentos distintos de sua história, em 1923 e 1926, apresentando a evolução de sua inadequação, por assim dizer; e pelo próprio título, em inglês, que reflete já a condição estrangeira do poeta revisitante, além de sugerir um olhar crítico sobre o lugar (revisitar = reler).

Leituras

No lugar de passar a limpo verso por verso, um método mais “transversal” de comparação entre os dois poemas. Partindo de duas perspectivas possíveis perante os textos para descobrir contrastes relevantes para este estudo.

Lendo as poesias uma em contraposição à outra, fica clara um diferenciação no nivel sintagmático, quanto ao uso dos números, pessoas e modos verbais – e a coincidência no tempo dos verbos: o presente. No poema de 1923, há uma profusão de orações na terceira pessoa do plural do imperativo: “Não me venham com conclusões! / [...] / Não me tragam estéticas! / Não me falem em moral! / Tirem-me daqui a metafísica! / Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas...”. No poema de 1926, por sua vez, a proeminência é da primeira pessoa do singular do indicativo: “Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo, / Anseio com uma angústia de fome de carne / O que não sei que seja – / [...] / Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto...”. Outro contraste é o uso maior e menor da negação; e a direção do verbo. No primeiro, em todas as ordens o objeto da ação verbal é o pronome pessoal me. No segundo, o pronome pessoal eu é o sujeito (oculto) nas indicações.

Apenas essa constatação, sem nem precisar partir para o conteúdo, já reflete a atitude perante a comunidade, diversa nos dois poemas. No primeiro o poeta ordena à sociedade (a terceira pessoa do plural a quem se dirige o discurso do poema) que não ajam sobre ele, isto é, que não exercem a ação dos verbos sobre o emissor (o pronome pessoal de primeira pessoa – Campos, Pessoa). Num claro exercício de resposta e agressão, o autor despeja suas angústias pela não-identificação com esta Cidade de meio-cegos; e contra a incompreensão despertada na província pela lucidez visionária, e cosmopolita, de suas “cinquenta existências” simultâneas. No segundo, o poeta é mais o sujeito das orações, que seu objeto – e afirma mais que nega a ação de cada verbo que desperta. Neste momento, expõe sua situação, mais que repele as interferências da comunidade em sua vida. Resignado, observa a “emaranhada forma humana corrupta da vida que muge e se aplaude”, para usar a imagem de Mário de Andrade em seu Meditação sobre o Tietê. E apenas registra seu descontentamento insolúvel.

Voltaremos às diferenças apresentadas no último parágrafo, na conclusão deste trabalho. Agora seguimos para a segunda das perspectivas que imaginei para reler os poemas. Esta, no campo semântico: as vezes em que o poeta se dirige à Lisboa – como é construída, com que imagens, com que sentimento acontecem essas declarações, em 1923 e 1926.

Em 1923, a desidentificação de que tratam os dois poemas estava ainda em processo. O autor buscava nas lembranças da infância (“Eterna verdade vazia e perfeita!”), passada em Lisboa – e aqui é onde Campos se torna Pessoa – alguma possível e improvável comunhão com o povo deste lugar. O mesmo céu azul destas recordações, e o “macio Tejo ancestral e mudo, pequena verdade onde o céu se reflete!”, eram o que tinha restado na “Lisboa de outrora de hoje”, a quem o poeta declarava: “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta”. A constatação desse estranhamento é o cerne do afastamento que Campos demandava de seus contemporâneos; e a revolta, talvez, reflexo de que a conclusão ainda não estava assimilada plenamente pelo autor.

Em 1926, algo se rompera, e já não era possível qualquer comunhão. A infância e o Tejo não lhe pertencem mais: “Outra vez te revejo, / Cidade da minha infância pavorosamente perdida...” e “Outra vez te revejo, / Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. // Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo – , / Transeunte inútil de ti e de mim, / Estrangeiro aqui como em toda parte”. O poeta, expatriado em sua pátria, vê-se como um “fantasma a errar em salas de recordações, / Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem / No castelo maldito de ter que viver...” (Podemos ainda cogitar sobre as metáforas: seriam os “ratos” seus adversários?; e as “tábuas que rangem”, a cultura local?; seria o “castelo maldito de ter que viver”, seu cotidiano sem perspectiva de sucesso literário?). A conclusão a que chega é peremptória e finaliza o poema: “Outra vez te revejo, / Mas, ai, a mim não me revejo! / Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, / E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – / Um bocado de ti e de mim!...”.

Direções

Duas datas: 1923 e 1926. Dois momentos diferentes do autor – e de sua “inadequação”. Pessoa eleva ao épico sua existência enquanto poeta, em Álvaro de Campos, o homem alienígena na sua sociedade, prodígio – vivendo seu cotidiano maçante, burocrático e comportado mas enlouquecidamente lúcido, visionário, hiperbólico. Essa relação oximórica essencial – a dialética poeta e sociedade – se reflete em sua poesia e através dela é possível reviver dois momentos desta convivência do futurista com a arcaica, passadista e provinciana Lisboa. Pessoa reinventa Portugal, um Portugal que (se) assusta por ser tão universal no uso de suas referências e tão português no sentimento.

Como bem anota Octavio Paz, em seu ensaio O Desconhecido de si mesmo – Fernando Pessoa, comentando o desenrolar dos fatos após a publicação da revista Orpheu (e da geração de poetas portugueses cujo aparecimento se deu em suas páginas):

"O episódio de Orpheu termina na dispersão do grupo e na morte de um de seus guias [Mário de Sá-Carneiro]. Há que esperar quinze anos e uma nova geração. Nada disso é insólito. O assombroso é o aparecimento do grupo, à frente de seu tempo e de sua sociedade. Que se escrevia na Espanha e na América espanhola por esses anos?"

Se a década de 10 foi a do surgimento deste grupo, a década de 20 é tempo de dispersão e resistência da sociedade lisboeta contra os arroubos destes artistas. Mais uma vez, o ensaio de Paz demonstra melhor o momento do poeta antes da feitura do primeiro Lisbon Revisited:

"O período seguinte [à publicação de Orpheu] é de relativa obscuridade. Pessoa publica dois cadernos de poesia inglesa, 35 Sonnets e Antinous, que o Times de Londres e o Glasgow Herald comentam com muita cortesia e pouco entusiasmo. Em 1922 aparece a primeira colaboração de Pessoa em Contemporânea, uma nova revista literária: O Banqueiro Anarquista. Também são desses anos suas veleidades políticas: elogios do nacionalismo e do regime autoritário. A realidade o desengana e obriga-o a desmentir-se: em duas ocasiões enfrenta o poder público, a Igreja e a moral social. A primeira para defender Antônio Boto, autor de Canções, poemas de amor uranista. A segunda contra a “Liga de ação dos estudantes”, que perseguia o pensamento livre com o pretexto de acabar com a chamada “literatura de Sodoma”. César é sempre moralista. Álvaro de Campos distribui uma folha: Aviso por causa da moral; Pessoa publica um manifesto; e o agredido Raul Leal escreve o folheto: Uma lição de moral aos estudantes de Lisboa e um desmascaramento da Igreja Católica. O centro de gravidade deslocou-se da arte livre para a liberdade da arte. A indole de nossa sociedade é tal que o criador está condenado à heterodoxia e à oposição. O artista lúcido não se esquiva a esse risco moral."

As frustrações de seu engajamento, e o enfrentamento do poder público, parecem refletir-se na virulência com que exige isolamento desta sociedade, no poema de 23. O desencanto ainda está se processando no artista, e é necessário expelir o pus das feridas da tentativa desolada de identificação. Após esse momento, a inadequação parece se sedimentar como sua condição em Lisboa. Curioso que logo após o poema de 1926, Pessoa finalmente encontraria interlocutores entre os jovens da geração seguinte à sua. Como bem anota Paz, num momento onde a utopia de viver de sua literatura, e de pertencer a sua pátria, já era uma imagem cansada de sonhos antigos:

"Em 1924, uma nova revista: Atena. Dura apenas cinco números. Nunca as continuações foram boas. Na realidade Atena é uma ponte entre Orpheu e os jovens de Presença (1927). Cada geração escolhe, ao aparecer, sua tradição. O novo grupo descobre Pessoa: por fim encontrou interlocutores. Demasiado tarde... "

Como podemos perceber, comparando os excertos sobre sua carreira com a análise do poema de 1926 nas Leituras desse estudo, a resignação é completa. Lisboa já era, a esse tempo, uma “sombra que passa através de sombras; e brilha / Um momento a uma luz fúnebre desconhecida, / e entra na noite como um rasto de barco se perde / Na água que deixa de se ouvir...”. As palavras de Campos, dirigidas a sua cidade, também serviriam para expressar, através de metáforas, a própria auto-imagem do autor, sombra que passa através de sombras, e brilha com luz fúnebre desconhecida, e se lança no mar noturno da cultura, sem deixar rastos perenes, mas se esvaindo na água que se deixa de ouvir: o esquecimento.

A situação extrema apresentada nos poemas e na vida de Pessoa são um símbolo, um mito encarnado do desterro a que os poetas, em nossa época, parecem todos sofrer – talvez com tanta maior violência quanto mais lúcido for o artista. Num momento histórico onde qualquer utopia é ridicularizada ou administrada pelos meios oficiais e oficiosos da sociedade habitada pelo poeta, vale terminar esse texto com as conclusões e a grande pergunta de Paz, que abrem seu ensaio Os Signos em Rotação:

"A história da poesia moderna é a de um descomedimento. Todos os seus grandes protagonistas, após traçar um signo breve e enigmático, estilhaçaram-se contra o rochedo. [...] Assim, a interrogação sobre as possibilidades de encarnação da poesia não é uma pergunta sobre o poema e sim sobre a história: será uma quimera pensar em uma sociedade que reconcilie o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida, criação da comunidade e comunidade criadora?"






Bibliografia


NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife: Cia Pacífica, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio/4, Poesias de Álvaro de Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.



Poemas:

LISBON REVISITED (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



LISBON REVISITED (1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para a que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras; e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rasto de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!...


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